São Paulo, quinta-feira, 21 de novembro de 2002
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outras idéias xico sá

Casanova amou centenas de mulheres sem precisar de um telefonema sequer. Anaïs Nin viveu amores às pencas na Paris pré-celular, ela simplesmente flanava gostosamente

Troque o celular por uma galinha gorda

O glorioso inventor da ansiedade, Alexander Graham Bell (1847-1922), deve se arrepender até hoje da sua patente telefônica. (Como Santos Dumont, dândi brasileiro em Paris, que maldisse do seu próprio brinquedo ao vê-lo nos céus da guerra). Nestes tempos em que celular virou brinco, eternamente colado às "oiças" de madames, de moçoilas, de executivos e de modernos em geral, uma reflexão recente de dona Maria do Socorro, brava sertaneja, mãe deste que vos berra, vem como pílula mais do que apropriada: "Conheci teu pai, namorei, casei, engravidei de todos vocês, criei minha família, cuidei de tudo direitinho, graças a Deus não morreu nenhum... E nunca precisei dar ou receber um telefonema, nem unzinho mesmo!".
A "nega", que só pegou em um telefone depois dos 50 anos, anda revoltada com parentes e amigas que vivem grudados ao celular. "Tá todo mundo de pescoço torto, cabeça decaída para um lado, parecendo frei Damião, por causa dessa moda nova. Ora, voltem a pôr as cadeiras nas calçadas, na frente das casas, e vão conversar sem o diacho desses aparelhos."
A máxima aceleração de ansiedade à qual dona Socorro submeteu os seus batimentos cardíacos foram os berros do carteiro. Nunca apertou, nervosinha, o Alt-F5 que faz disparar os corações da era do amor nos tempos do e-mail. Que muitas vezes não passa do spam da canalhice.
A lamúria da falta do telefonema do dia seguinte, protesto do novo código do bom-tom das moças, também é situação nunca dantes vivida. Sem a invenção do velho Graham Bell, o dia seguinte nascia sob aurora mais sossegada.
Tudo dependia mesmo da dramaturgia do encontro. A onipresença amorosa e/ou comercial instaurada com o celular não era coisa deste mundo. Uma carta, no máximo, poderia ser uma estratégia, garrafa atirada ao mar de tantas Penélopes.
Um recado pelo rádio também valia, mas para casos de sumiços de verdade -cheguei a ser sub do sub-redator de programa do gênero, comandado pelo locutor Gevan Siqueira, na rádio Vale do Cariri, em Juazeiro, com recados amorosos e novelinhas à moda de "Tia Júlia e o Escrevinhador", de Vargas Llosa.
Deixemos de ser plantonistas do mundo. No amor, assim como nos negócios, não somos tão importantes a ponto de alimentar essa onipresença digital. Casanova amou centenas de mulheres sem precisar de um telefonema sequer. Anaïs Nin viveu amores às pencas na Paris pré-celular; em vez de papo furado, ela simplesmente flanava gostosamente pelos bares e cafés. No dia seguinte, não carecia de telefonemas, apenas de sono e água fresca e rodelas de pepino para apagar as olheiras.
No mundo dos negócios, Antônio Ermírio de Moraes e outros tantos colegas do PIB das antigas também construíram seus impérios sem essa maldição da telefonia móvel.
Quer jogar conversa fora, faça como a velha recomendação de um Jeca Tatu: "Mate uma galinha gorda no domingo e me convide para comer".


XICO SÁ, jornalista, edita o site de crônicas de costumes O Carapuceiro (www.carapuceiro.com.br), e-mail: xico@uol.com.br



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