São Paulo, quinta-feira, 22 de janeiro de 2004
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s.o.s. família

Rosely Sayão

Criança incorpora imagem que adultos têm dela

Já perceberam como adulto gosta de enquadrar as pessoas com adjetivos, estilos, características etc. para defini-las? Fulano é expansivo, sicrano é difícil, beltrano é chato e assim por diante. Quando um adulto é descrito por outro dessa maneira, não há problema nenhum, já que se espera que ele saiba ter um julgamento próprio a respeito de si e que possa também se defender daquilo que é dito a seu respeito e que não considera apropriado e, até mesmo, superar esse tipo de comentário.
O problema surge quando uma criança está envolvida nesse enquadramento, e pais e professores fazem isso em profusão. "Meu filho é tímido", "Aquela criança é agitada", "Fulano é mentiroso" e "Tal aluno é fofoqueiro" são algumas descrições que já ouvi adultos fazerem de crianças.
Elas podem mesmo apresentar as características apontadas. A questão é que a infância é o período em que a criança constrói sua imagem como pessoa, e essa construção ocorre a partir de matrizes de identificação que ela encontra no ambiente em que vive, que os adultos que convivem com ela lhe oferecem.
Se uma criança mente uma, duas, três vezes e, a partir de então, é descrita como mentirosa, essa matriz passa a fazer parte da imagem que ela constrói a seu respeito. E, além de ser descrição, passa a ser identificação e até profecia, mesmo quando negada. Se um educador, familiar ou escolar, diz a uma criança que ela não deve ser mentirosa, por exemplo, está afirmando que ela já o é ou está se tornando mentirosa.
Mentir é diferente de ser mentiroso, mas uma criança ainda não faz essa distinção e, quando se vê descrita por uma imagem desse tipo, acaba por tomar essa referência para se situar, para se perceber e para se identificar. Adota a parte pelo todo e, a partir de então, é bem mais provável que a mentira passe a se tornar mais freqüente em sua vida. É assim que ela se reconhece porque é dessa maneira que os adultos próximos a reconhecem. O que um adulto diz a uma criança a respeito dela funciona como um espelho.
Pode parecer apenas uma questão de construção lingüística, mas não é. Dizer a uma criança que ela mentiu e dizer que ela é mentirosa faz uma grande diferença para o seu desenvolvimento. Ralhar com o filho por ele ter feito sujeira onde não deveria é diferente de dizer que ele é um porcalhão. Chamar a atenção de um aluno por ele não parar quieto é bem diferente de dizer que ele é hiperativo.
Além disso, enquadrar a criança em determinadas categorias de comportamento ou de atitude aniquila também a possibilidade de ela experimentar outras atitudes até encontrar o jeito mais adequado para si. A matriz de identificação pode aprisionar.
Lembram quando comentei o fato de ser muito comum alunos serem identificados pelos seus professores como bons ou ruins, dedicados ou não, comportados ou transgressores? Funciona da mesma maneira. Um aluno que logo é descrito como comportado na escola pelo fato de, em geral, acatar as regras do espaço e/ou dos professores com mais facilidade acaba por se pressionar para ser sempre assim. E isso resulta em contenção, em reserva, em inibição, não em aprendizado de responsabilidade, de independência, de respeito e de autonomia.
Tive a chance de testemunhar um fato bem interessante que ilustra essa nossa conversa. Três crianças entre seis e oito anos, mais ou menos, almoçavam juntas no restaurante de um hotel. Os pais estavam por perto e elas preferiram a independência.
Enquanto almoçavam, elas conversavam e se observavam, é claro. Em determinado momento, uma delas tirou um alimento do prato e colocou sobre a toalha da mesa. A outra, atenta, disparou: "Isso é feio! Se você não quer comer, deixe no prato". A resposta veio curta e grossa: "Eu sei". E, quando questionado por que agia assim mesmo sabendo que era errado, o garoto afirmou com a maior tranqüilidade: "É que sou teimoso". Quantas vezes será que esse garoto ouviu essa frase dos pais?


ROSELY SAYÃO é psicóloga, consultora em educação e autora de "Como Educar Meu Filho?" (Publifolha); e-mail: roselys@uol.com.br


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