São Paulo, quinta-feira, 22 de julho de 2004
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Projeto social ajuda a superar período de luto

Jefferson Coppola/Folha Imagem
Michel Heibut, que foi atingido por bala perdida, está na ONG Sou da Paz


Vítimas de traumas profundos tentam afastar o sofrimento e ajudar outros na mesma situação

MARIA FERNANDA GONÇALVES
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Na contramão de reações como revolta, culpa e insegurança, comuns a quem passa por um período de luto, após a morte de um filho ou um episódio de violência, por exemplo, há quem responda a grandes traumas de maneira improvável: levantando bandeiras por mudanças e convivendo intimamente com o motivo do seu sofrimento.
Foi assim com a psicóloga carioca Cleyde Prado Maia, 46, que há um ano e três meses abandonou suas atividades profissionais e se dedica exclusivamente a coletar um milhão de assinaturas, via internet, para dar respaldo à aprovação de um projeto de lei que modifique a legislação penal. Entre as mudanças propostas, estão a que estipula que o condenado seja obrigado a trabalhar para ter direito a benefícios e a que impede que o condenado por crime hediondo recorra da sentença em liberdade.
Em março de 2003, a psicóloga perdeu sua filha única, atingida aos 14 anos por uma bala perdida no metrô da Tijuca (RJ), durante troca de tiros entre assaltantes e a polícia. "Não tenho mais minha filha, que me dava orgulho, mas digo que transformei minha dor em luta. Queria ser um tijolinho na luta contra a violência", diz a fundadora do movimento Gabriela Sou da Paz (www.gabrielasoudapaz.org).
Segundo o psiquiatra Eduardo Ferreira Santos, supervisor do serviço de psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (IPQ-HC), "transformar a perda, a angústia e o sentimento de impotência decorrentes de um trauma em uma situação social útil é um dos mecanismos de defesa mais saudáveis". Ele explica que as vítimas de traumas que levantam bandeiras ou se engajam em movimentos de grupos estão à procura de soluções para lidar com a sua impotência diante da perda.
Ter sido vítima da violência urbana foi determinante para que o estudante de ciências da computação Michel Heilbut, 23, se integrasse ao Instituto Sou da Paz (www.soudapaz.org.br) -organização paulista que trabalha na promoção de políticas públicas de segurança pelo desarmamento, entre outros pontos, e não tem ligação com o movimento Gabriela Sou da Paz.
Heilbut foi atingido no rosto por uma bala perdida ao passar perto de um posto de gasolina na Cidade Jardim, bairro paulistano de classe média alta, onde acontecia uma troca de tiros entre assaltantes e seguranças. Não teve seqüelas físicas, mas passou por duas cirurgias de reconstrução facial e da arcada dentária.
"A violência está mais perto do que imaginamos. É importante as pessoas terem consciência disso e pressionarem os políticos para mudar essa situação", diz o estudante, que ajuda na montagem do site da organização, mas pretende se dedicar mais ao instituto a partir dos próximos meses, quando passa a integrar um grupo mais restrito, que se reúne mensalmente para discutir conquistas e desafios da organização.
A terapeuta corporal Maria Júlia Miele, 37, transformou em livro a experiência dos 14 meses passados na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) com a filha recém-nascida. "Mãe de UTI - Amor Incondicional" será lançado em agosto (ed. Terceiro Nome) e registra em forma de diário as angústias da mãe, que perdeu a filha em julho de 2002, depois de o bebê ter feito duas cirurgias para corrigir uma má formação do coração.
"Eu via o desamparo e o tamanho da solidão, especialmente das mães, que não estavam preparadas para receber informações impossíveis de assimilar", diz a terapeuta, que conta desde então com acompanhamento psicológico. "Tenho períodos de raiva e tristeza, mas sei que, se não há continuação, pode haver um recomeço."
A saída para o recomeço foi a criação, em maio deste ano, do Gahmpi - Grupo de Apoio Humano a Mães e Pais Intensivistas (gahmpi@uol.com.br) -um pólo de integração para que as pessoas troquem suas experiências. "Informações médicas podem ser conseguidas com pesquisa, mas nada como poder conversar com outras mães e pais que tiveram um problema igualzinho ao seu. Isso fortalece os pares", diz.
Para montar essa rede de contatos, está sendo construída uma página virtual que deverá entrar no ar no próximo mês. No site, haverá depoimentos de pais e mães, informações sobre a importância do aleitamento materno na UTI e sobre cirurgias em bebês prematuros.
O Gahmpi também está criando convênios com hospitais para oferecer apoio psicológico a mães e pais intensivistas e a profissionais da saúde, além de uma rede de 50 massagistas. Miele, que também é massagista, lembra que o fato de a mãe receber um carinho e voltar-se para ela própria é um grande alento. "Ela lembra que também é um indivíduo, um ser humano; chora e coloca sua tensão para fora."
O psiquiatra do Ambulatório de Ansiedade do Instituto de Psiquiatria do HC Luiz Vicente Figueira de Mello alerta para problemas graves que podem acometer vítimas que não conseguem superar o trauma. Segundo ele, pesquisas internacionais apontam que cerca de 5% das vítimas de traumas desenvolvem transtorno de estresse pós-traumático (Tept). Alguns dos sintomas desse transtorno são flashbacks (imagens do trauma que surgem espontaneamente), pesadelos, depressão, isolamento e sentimento de incompreensão, além de agressividade, impulsividade, irritabilidade, angústia e medos. "Se forem observados os sintomas, é importante que haja uma avaliação psicológica e/ou psiquiátrica, já que o transtorno provoca um prejuízo importante na vida da pessoa", alerta o psiquiatra.


Texto Anterior: Frase
Próximo Texto: Frases
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.