UOL


São Paulo, quinta-feira, 24 de abril de 2003
Texto Anterior | Índice

outras idéias - dulce critelli

Se a banalização desse mal conduzisse à sua eliminação, estaríamos recompensados, mas ela só o reveste de uma ambiguidade

O mal que entretém

O rumo da história está mudando com a guerra no Iraque e numa velocidade incompatível com o tempo necessário para compreendermos e assimilarmos o verdadeiro significado dessa mudança.
Não somos seus meros espectadores. Essa guerra nos afeta pelo que ouvimos, lemos e vemos a seu respeito. Ela aparece nos nossos sonhos, contamina nosso humor, dirige surdamente nossos planos. Não importa onde ocorra, uma guerra se espalha por toda parte como uma nuvem negra, um peso difuso. Algo como a peste descrita por Camus, como a esfinge que Édipo enfrenta ou como as moscas de Sartre -um mal que nos assombra e nos ameaça.
O mal que se desprende na guerra é a prepotência do poder, o ímpeto devastador e desmedido da força e da violência que, de propósito, são usadas para ferir e matar os homens, para devastar o mundo por eles tão arduamente construído e, a reboque, assolar a natureza.
Parece-nos que não há como afrontá-lo, como detê-lo ou como nos protegermos dele. Ao contrário, cedemos a ele, em especial quando ele entra em nossas vidas pela TV, com a ligeireza das margarinas, das novelas, do futebol. O mal da guerra é banalizado.
Se a banalização desse mal conduzisse à sua eliminação, estaríamos recompensados, mas ela só o reveste de uma ambiguidade. O mal entretém. Ele é mal e é bem. Apanhados nessa ambivalência do mal de uma guerra, perdemos de vista seu sentido original e aprendemos a conviver com ele, como aprendemos a conviver no dia-a-dia com toda sorte de violência, de maus-tratos, de banditismo, de perversidade, de exploração, de sabotagem, de corrupção. Nós o sofremos sem nos darmos conta dele. Distraídos, nós nos entrosamos com o mal. Assim, não só perdemos a possibilidade de objetivá-lo, de refletir sobre ele e de compreender seu significado como perdemos a chance de decidir a seu respeito, de aceitá-lo em nossa vida ou de expurgá-lo. Perdemos a compreensão, a escolha, a liberdade.
Com a Revolução Francesa, nosso mundo consolidou a idéia de que só por meio da força as mudanças desejadas e a reestruturação dos regimes políticos podem ocorrer. Como reafirma Marx, "a violência é a mola mestra da história". A guerra é vista como um mero meio para atingir um fim e, como "os fins justificam os meios", a guerra se legitima como "mal necessário" (para eliminar armas biológicas, para retirar tiranos do poder etc.). O mal outra vez se converte em bem e se banaliza. Sob estes pressupostos se ergue a modernidade e assim se impuseram todas as ditaduras, as tiranias, os imperialismos, os regimes totalitários.
E, no entanto, ainda que não sejam dominantes, existem hoje ações que propõem trocar a força e a violência pela cooperação, pela criatividade, pelo respeito ao mundo e à natureza, pela solidariedade. Propostas que tornam a guerra obsoleta. Propostas que convocam à reinvenção da nossa própria humanidade.


DULCE CRITELLI, professora de filosofia da PUC-SP, é autora dos livros "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica do Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana; e-mail: dulcecritelli@existentia-br.com


Texto Anterior: alecrim: Curinga na mesa
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.