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São Paulo, quinta-feira, 24 de julho de 2003
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Surdos não são mudos, nem todos lêem os lábios, e falar devagar não faz diferença; saiba como melhorar a comunicação com eles

Movimento propõe que deficiente se assuma

Bruno Stuckert/Folha Imagem
Integrantes do grupo de percussionistas surdos Surdodum


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Falar gritando. Ou, ao contrário: bem devagarinho, de forma bastante pronunciada, abrindo e fechando a boca exageradamente e até repetindo a frase várias vezes. Essas são algumas das formas bizarras adotadas por ouvintes para facilitar a comunicação com uma pessoa surda. Além de estranhas, elas são completamente inúteis, não surtem o efeito desejado.
Reina na sociedade um amplo desconhecimento a respeito da deficiência auditiva, dizem especialistas e portadores de surdez. E a causa dessa ignorância reside, em boa parte, no fato de a surdez ser uma deficiência invisível, como é chamada por portadores. Ao contrário de quem usa cadeira de rodas ou é cego, o surdo pode passar despercebido num lugar e, com isso, ser ignorado pela sociedade ouvinte, em especial pelas políticas públicas de inclusão de deficientes.
Para despertar a consciência dos surdos, estimulá-los a assumir, sem vergonha, sua condição e sua cultura e para combater as discriminações, surgiu nos Estados Unidos, no começo dos anos 90, o Deaf Pride (Orgulho Surdo), que até conta com paradas realizadas em várias cidades dos EUA e do Canadá.
A versão brasileira começa a tomar forma, mas sem o extremismo da matriz. Nos EUA, casais surdos chegam a procurar médicos para conceber filhos surdos. Uma das estratégias cogitadas é não evitar que a mulher contraia rubéola, durante a gestação -uma das várias causas de surdez em crianças.
Por aqui, uma das principais bandeiras do grupo é sair do armário. Para o surdo, a expressão significa assumir a língua de sinais como idioma preferencial e deixar de se dedicar anos a fio no consultório do fonoaudiólogo para desenvolver a fala e treinar a leitura labial -só para "falar direitinho e agradar à maioria ouvinte", como alegam os defensores do Orgulho Surdo.
Segundo Fernando Capovilla, 42, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, a comunicação por sinais é a mais natural para os surdos. "Como se sabe há muito tempo, nos ouvintes a área da linguagem localiza-se no perisilviano temporal do cérebro. Nos surdos, ela fica no parietal, responsável também pela articulação das mãos. Por isso há a predisposição para os sinais", diz Capovilla.
A professora de ensino fundamental Silvia Sabanovaite, 46, foi treinada para ler lábios e falar fluentemente, mas, na comunicação com os filhos, também surdos, optou pelos sinais. Ela conta que, quando procurava trabalho, costumava revelar que era surda só na fase final das entrevistas. Porém, depois da revelação, nunca era contratada.
"Como sou filha de lituanos, as pessoas pensavam que meu jeito diferente de falar era sotaque", conta. Certa vez, ela decidiu simplesmente esconder a surdez e conseguiu o trabalho. Como professora, era difícil receber uma ligação telefônica, o que poderia denunciar a sua condição. Quatro meses depois de contratada, porém, recebeu um chamado. "Disse que não podia atender, e as pessoas ficaram pasmas: "O quê? Surda?", diziam elas."
Mãe e avó de surdos, a professora mudou de opinião durante a criação dos filhos, que, ao contrário dela, nunca cogitaram esconder a sua condição, apesar de serem oralizados.
"O surdo oralizado é mais confortável só para os ouvintes", diz Patrick Roberto Gaspar, 28, estudante de pedagogia e filho de Sabanovaite. "Por que o ouvinte convida intérpretes quando não entende o idioma de um palestrante, e nós, surdos, não podemos fazer o mesmo?", questiona ele, que é simpatizante do Orgulho Surdo.
O tradutor para a linguagem dos sinais é apenas uma das inúmeras necessidades às quais o surdo brasileiro não consegue ver atendidas. Na televisão, por exemplo, o "closed caption", recurso de legendas ocultas dos programas acionado pela tecla SAP, é adotado apenas por duas emissoras do país e, mesmo assim, em 30% da programação.
Fora do armário, para os surdos, é mais fácil também lidar com o preconceito. "A discriminação ocorre porque as pessoas não sabem o que é a surdez", diz Sabanovaite.
Outra demonstração da invisibilidade da deficiência: a língua brasileira de sinais (libras) só foi reconhecida oficialmente no ano passado, quando também foi publicado o seu primeiro dicionário ("Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilíngue da Língua de Sinais Brasileira", editora Edusp, R$ 120), de autoria de Fernando Capovilla. Nos EUA, a American Sign Language (Linguagem Americana de Sinais) foi oficializada há quatro décadas.
"O mundo foi feito para os ouvintes. Nós precisamos saber que a surdez implica na formação de uma outra cultura, de uma identidade que precisa ser respeitada. Como eles têm menos acesso à informação, desenvolveram valores que são só deles. A língua é um de tantos outros", diz a professora Ana Lúcia Soares, 28, do Centro de Educação, Audição e Linguagem (Ceal), do Distrito Federal.
Soares aprendeu libras com uma amiga de infância que era surda e é autora de um programa de educação especial de músicos que começa a chamar a atenção fora do país. Trata-se do Surdodum, grupo de percussão formado por 25 surdos, que aprendem noções de ritmo e melodia pela vibração que o som provoca no corpo. "O objetivo é mostrar que o chamado deficiente auditivo pode tudo, inclusive fazer música, uma das habilidades humanas mais ligadas à audição", diz.
Surdo não apenas produz música como também pode falar. Outro grande engano disseminado na sociedade é o de que a mudez sempre acompanha a surdez. O deficiente auditivo tem voz, apenas precisa ser treinado e bem cedo, ainda na infância, para aprender a falar. (SERGIO DURAN)


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