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outras idéias
dulce critelli
Na solidão nada é real
O que vemos ou ouvimos sozinhos é insuficiente para decretar a realidade de qualquer coisa. Nada é real se for percebido em solidão. O real é compartilhado
Em conversa com a mãe de uma amiga, falávamos de como a cidade de
São Paulo havia crescido e estava superpopulosa. Dona Inês (os nomes são fictícios) lembrou-se de um acontecimento meio parecido
com a história do Chapeuzinho Vermelho:
- Quando eu tinha uns sete anos, minha mãe me mandou levar umas verduras para minha avó, que morava mais ou menos a um quilômetro de distância da nossa casa. São Paulo era ainda uma cidade muito vazia, e o caminho que eu devia fazer era cheio de terrenos baldios. Fui andando com muito
medo. Rezava e pedia proteção. De repente, uma luz muito forte brilhou à
minha frente e, no meio dela, apareceu aquela Nossa Senhora.
Dona Inês interrompeu a narrativa e me perguntou:
- Como se chama mesmo aquela Nossa Senhora que tem um rosário na
mão?
- Nossa Senhora do Rosário, respondi prontamente. Dona Inês, então,
disse firmemente à filha:
- Ouviu, Rosa, ela confirmou que aquela santa era mesmo Nossa Senhora
do Rosário. Está vendo como foi verdade o que me aconteceu?
Adoro essa história. Ela mostra que a realidade, tema central da filosofia, é
questão ainda mais fundamental para a nossa vida cotidiana. Enquanto não
pudermos confiar que aquilo com que lidamos é real, não podemos estar seguros de nada, nem de nós mesmos.
Como acreditar que o que vemos, ouvimos, tocamos, cheiramos, sentimos,
enfim, é real?
Quando criança, se eu dizia a meus pais que alguma amiga era ruim por ter
quebrado algum brinquedo meu, eles, em geral, me diziam que ela fora desastrada. O que era real: a minha percepção ou a de meus pais?
Às vezes, eu acordava assustada e minha mãe me acalmava, dizendo que eu
só tivera um sonho. Então os sonhos não eram reais? E o meu medo? E o que
eu vira e me assustara tanto?
Nosso senso de realidade está determinado pelas nossas percepções, mas
somente por aquelas que experimentamos em vigília. Lúcidos e acordados.
Além disso, precisamos de companhia para nossas percepções. O que vemos ou ouvimos sozinhos é insuficiente para decretar a realidade de qualquer coisa. Nada é real se for percebido em solidão. O real é compartilhado.
Entre o caso que dona Inês relatava e a nossa conversa, já se haviam passado uns 70 anos, mas ela ainda precisava provar para si mesma a realidade de
sua experiência. Ela me propôs uma armadilha, na qual caí de imediato, para
me tornar sua cúmplice e garantir uma companhia, ainda que remota, para o
que viveu. São sempre os outros que confirmam o que percebemos e garantem tudo o que existe. Eles também confirmam a realidade da nossa própria
existência.
Como na nossa cultura, por exemplo, o aparecimento de santos é, no mínimo, um milagre, não uma ocorrência usual, dona inês, enquanto viver, precisará do testemunho de outros para tornar menos insólita sua percepção.
A realidade é o que temos "em comum" com os outros -não só porque
experimentamos juntos uma mesma situação, mas porque falamos uns com
os outros sobre ela, pois "... o que é para ser são as palavras...", lembra Guimarães Rosa. Talvez seja essa a grande importância da mídia e aquilo que a
torna o principal instrumento da nossa socialização. Ela não só exibe os mesmos fatos simultaneamente a milhares de espectadores como também os
apresenta sempre sob uma dada interpretação. Tudo é visto sob um certo
olhar e com um valor já determinado. Nas suas palavras, está o que parece ser
lícito, o que parece ser lei e o que parece ser real. E, numa sociedade em que
ouvimos mais os personagens da telinha do que nossos vizinhos de carne e
osso, a mídia se torna a dona da verdade, a senhora da realidade.
Se as palavras são a casa do real, elas também podem ser apenas o seu simulacro. Se elas salvam, também podem pôr em perigo -tanto os que falam
como os que ouvem.
DULCE CRITELLI, professora de filosofia da PUC-SP, é autora dos livros
"Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora
do Existentia - Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana; e-mail
dulcecritelli@existentia-br.com
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