São Paulo, quinta-feira, 26 de fevereiro de 2004
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outras idéias

dulce critelli

Na solidão nada é real

O que vemos ou ouvimos sozinhos é insuficiente para decretar a realidade de qualquer coisa. Nada é real se for percebido em solidão. O real é compartilhado

Em conversa com a mãe de uma amiga, falávamos de como a cidade de São Paulo havia crescido e estava superpopulosa. Dona Inês (os nomes são fictícios) lembrou-se de um acontecimento meio parecido com a história do Chapeuzinho Vermelho:
- Quando eu tinha uns sete anos, minha mãe me mandou levar umas verduras para minha avó, que morava mais ou menos a um quilômetro de distância da nossa casa. São Paulo era ainda uma cidade muito vazia, e o caminho que eu devia fazer era cheio de terrenos baldios. Fui andando com muito medo. Rezava e pedia proteção. De repente, uma luz muito forte brilhou à minha frente e, no meio dela, apareceu aquela Nossa Senhora.
Dona Inês interrompeu a narrativa e me perguntou:
- Como se chama mesmo aquela Nossa Senhora que tem um rosário na mão?
- Nossa Senhora do Rosário, respondi prontamente. Dona Inês, então, disse firmemente à filha:
- Ouviu, Rosa, ela confirmou que aquela santa era mesmo Nossa Senhora do Rosário. Está vendo como foi verdade o que me aconteceu?
Adoro essa história. Ela mostra que a realidade, tema central da filosofia, é questão ainda mais fundamental para a nossa vida cotidiana. Enquanto não pudermos confiar que aquilo com que lidamos é real, não podemos estar seguros de nada, nem de nós mesmos.
Como acreditar que o que vemos, ouvimos, tocamos, cheiramos, sentimos, enfim, é real?
Quando criança, se eu dizia a meus pais que alguma amiga era ruim por ter quebrado algum brinquedo meu, eles, em geral, me diziam que ela fora desastrada. O que era real: a minha percepção ou a de meus pais?
Às vezes, eu acordava assustada e minha mãe me acalmava, dizendo que eu só tivera um sonho. Então os sonhos não eram reais? E o meu medo? E o que eu vira e me assustara tanto?
Nosso senso de realidade está determinado pelas nossas percepções, mas somente por aquelas que experimentamos em vigília. Lúcidos e acordados.
Além disso, precisamos de companhia para nossas percepções. O que vemos ou ouvimos sozinhos é insuficiente para decretar a realidade de qualquer coisa. Nada é real se for percebido em solidão. O real é compartilhado.
Entre o caso que dona Inês relatava e a nossa conversa, já se haviam passado uns 70 anos, mas ela ainda precisava provar para si mesma a realidade de sua experiência. Ela me propôs uma armadilha, na qual caí de imediato, para me tornar sua cúmplice e garantir uma companhia, ainda que remota, para o que viveu. São sempre os outros que confirmam o que percebemos e garantem tudo o que existe. Eles também confirmam a realidade da nossa própria existência.
Como na nossa cultura, por exemplo, o aparecimento de santos é, no mínimo, um milagre, não uma ocorrência usual, dona inês, enquanto viver, precisará do testemunho de outros para tornar menos insólita sua percepção.
A realidade é o que temos "em comum" com os outros -não só porque experimentamos juntos uma mesma situação, mas porque falamos uns com os outros sobre ela, pois "... o que é para ser são as palavras...", lembra Guimarães Rosa. Talvez seja essa a grande importância da mídia e aquilo que a torna o principal instrumento da nossa socialização. Ela não só exibe os mesmos fatos simultaneamente a milhares de espectadores como também os apresenta sempre sob uma dada interpretação. Tudo é visto sob um certo olhar e com um valor já determinado. Nas suas palavras, está o que parece ser lícito, o que parece ser lei e o que parece ser real. E, numa sociedade em que ouvimos mais os personagens da telinha do que nossos vizinhos de carne e osso, a mídia se torna a dona da verdade, a senhora da realidade.
Se as palavras são a casa do real, elas também podem ser apenas o seu simulacro. Se elas salvam, também podem pôr em perigo -tanto os que falam como os que ouvem.


DULCE CRITELLI, professora de filosofia da PUC-SP, é autora dos livros "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana; e-mail dulcecritelli@existentia-br.com


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