São Paulo, quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009
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OUTRAS IDEIAS

Anna Veronica Mautner

Sabedoria popular


[...]
ESSES BRINQUEDOS FORAM SUBSTITUÍDOS POR TRAQUITANAS QUE CHEGAM PRONTAS PARA SEREM QUEBRADAS OU LARGADAS


Puxando pela minha memória, de criança de bairro, em que sobrava pouco dinheiro para comprar brinquedo, mas nem por isso brincava-se menos, lembrei-me de tantas brincadeiras que conhecíamos que não resisto a enumerá-las. Ocupará um bom pedaço desta crônica, mas vale a pena lançar ao vento esses nomes que nós, nos quintais e nas calçadas, gritávamos uns aos outros: "Vamos brincar de amarelinha?"
Pipa, cabra-cega, pião, bilboquê, pular corda, amarelinha, queimada, pegador, passa-anel, estátua, corrupio, peteca, três marias, bolinha de gude, casinha, escolinha, médico, vaca amarela, lenço atrás etc.
Esses eram folguedos comuns a meninos e meninas -uns, só de meninas, outros, só de meninos. Futebol, carrinho de rolimã, pipa, bolinha de gude e taco eram de menino. Eles próprios construíam o carrinho de rolimã e a pipa, e assim desenvolviam não só sociabilidade como habilidade manual. Essas construções tinham que ser seguras, bem-feitas. Tinha que haver competência, senão não dava para brincar.
Por que amarelinha é de mulher e bolinha de gude é de menino provavelmente algum antropólogo possa responder. Eu não sei. O importante é que menino não brincava de amarelinha nem de casinha e não gostava muito de brincar de roda. Não lembro de menino brincando nem de corrupio, que é um pouco mais enérgico.
Dois fatos são inegáveis: os brinquedos dispensavam investimento em dinheiro e exigiam um certo saber fazer. Um jogo como o passa-anel podia misturar crianças de várias idades. Exigia dos jogadores controle da expressão facial e do movimento da mão tanto de quem passava o anel como de quem poderia vir a receber.
Pensando nos detalhes, trata-se de um extraordinário exercício de contenção e de observação mútua. Esses brinquedos se perderam e foram substituídos por traquitanas que entopem as lojas e que chegam prontinhos para serem usados, quebrados ou largados. Que pena!
Uma brincadeira como a de casinha permitia às meninas, usando arremedos de objetos caseiros, se exercitarem no futuro papel de mamãe e até mesmo de vovó. Era um fantástico exercício de aplicação do que as crianças observam no cotidiano, além de permitir elaboração e catarse. Não é à toa que, em ludoterapia, brinca-se de casinha, de escolinha e outros jogos em que a competição e os sonhos se misturam, enquanto a psicóloga tenta ler a alma da criança. Pular corda e jogo de sela são tipos de jogo que ao divertir fazem as vezes de exercícios de psicomotricidade.
O caráter universal desses brinquedos talvez seja uma parte importante da formação de identidade nacional. Muitas vezes eu já ouvi criança vinda do sul ou do norte, ao chegar aqui, colocar naturalmente a questão: "Na sua terra também se brinca disso ou daquilo?" E parece que a maioria é tanto daqui quanto dali.
As regras são abertas, têm um tanto de universalidade e um tanto que se pode modificar na hora, para se adaptar a outro grupo. Quando crianças se encontram pela primeira vez e vão brincar de pegador ou pique, que seja, sempre se passa em revista as regras para ver se há consenso. Isso indica solidariedade e, se quisermos, até democracia.
Na hora de brincar na calçada, quem tinha mais ou menos não aparecia. Quando um ganhava uma bola de futebol, todos da rua se beneficiavam. E se não houvesse bola oficial, a mãe fazia uma bola de meia.
Os brinquedos tradicionais, analisados em detalhes, exercitam para a vida. Permitem desenvolver pontos fracos, aceitar diferenças e valorizar talentos. O bom de bola não é obrigado a ser bom de pipa. Nada contra jogos eletrônicos. Tudo contra se forem o único entretenimento das crianças.
No Google dá para achar muitos jogos explicadinhos.
Em resumo, diria, os jogos tradicionais ajudam bem o desenvolvimento emocional intelectual e motor das crianças.


ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

amautner@uol.com.br

Leia na próxima semana a coluna de Dulce Critelli


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