São Paulo, quinta-feira, 26 de agosto de 2004
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outras idéias

michael kepp

A mania nacional da transgressão leve

Pquenos delitos são transgressões leves que passam impunes e, no Brasil, estão tão institucionalizados que os transgressores nem têm idéia de que estão fazendo algo errado. Ou então acham esses "miniabusos" irresistíveis, apesar de causarem "minidanos" e/ ou levarem a delitos maiores. Esses maus exemplos são também contagiosos. E, em uma sociedade na qual proliferam, ser um cidadão-modelo exige que se reme contra uma poderosa maré ou que se beire a santidade.
Alguns pequenos delitos -fazer barulho em casa a ponto de incomodar os vizinhos ou usar as calçadas como depósito de lixo e de cocô de cachorro- diminuem a qualidade de vida em pequenas, mas significativas, doses. Eles ilustram a frase do escritor Millôr Fernandes: "Nossa liberdade começa onde podemos impedir a dos outros".


Apesar de os delitos pequenos estarem institucionalizados demais para notar ou serem tentadores demais para resistir, dizer "não" a eles beneficia a sociedade como um todo. E um "não" vigoroso o bastante pode alertar os distraídos e os fracos de espírito para que, em uma sociedade que se guia pela "lei de Gerson", nossa bússola moral possa nos apontar o caminho


No ano passado, o grupo de adolescentes que furou a enorme fila para assistir ao show gratuito de Naná Vasconcelos, na qual eu e outros esperávamos por horas, impediu nossa liberdade. Os jovens receberam os ingressos gratuitos que, embora devessem ser nossos, se esgotaram antes de chegarmos à bilheteria.
A frase de Millôr também cai como uma luva para o casal que recentemente pediu a um amigo -na minha frente, na fila das bebidas, no intervalo de uma peça- que comprasse comes e bebes para ambos. O fura-fila indireto me irritou não só porque demorou mais para me atenderem mas também porque o segundo ato estava prestes a começar. Qual é a diferença deles para os motoristas que me ultrapassam pelo acostamento nas estradas e depois furam a fila, atrasando a minha viagem? E que dizer daqueles motoristas que costuram atrás das ambulâncias?
Outros pequenos delitos causam danos porque representam uma pequena parte da reação em cadeia que corrói o tecido social. Os brasileiros que contribuem para a rede de consumo de drogas não são apenas os que as compram mas até os que as consomem de vez em quando em festas. Uma simples tragada liga você, mesmo que de modo ínfimo, ao traficante e à bala perdida, mas atos aparentemente tão inócuos e difíceis de condenar nos forçam a pensar no que constitui um pequeno delito.
Por exemplo, que dano social pode ser causado pelo roubo de "lembrancinhas" -de toalhas e cinzeiros de hotel a cobertores de companhias aéreas? Bem, os hotéis e companhias aéreas compensam o custo de substituir esses objetos aumentando levemente o preço. Os varejistas fazem o mesmo para compensar as perdas com pequenos furtos.
Outros pequenos delitos são mais fáceis de classificar, mas igualmente tentadores de cometer. Veja o caso da pessoa que não diz ao caixa que recebeu por engano uma nota de R$ 50 em vez da correta nota de R$ 10. Ou do garoto que obedece ao trocador, passa por baixo da roleta e lhe passa uma nota de R$ 1 em vez de pagar à empresa de ônibus R$ 1,60. Esse suborno não é igual a pagar à polícia uma propina para se safar? Essas caixinhas não seriam também crias do famoso caixa dois, que já virou uma instituição?
Um dos meus vizinhos disse que alguns desses pequenos delitos, como vários tipos de caixa dois, são fruto da necessidade. Ele escreve, embora não assine, monografias para que universitários preguiçosos/ocupados terminem seus cursos. É assim que põe comida na mesa. Apesar de defender sua atividade antiética dizendo que "a fome também é antiética", ele bem que poderia perder 20 quilos.
Outro vizinho vendeu sua cobertura no Rio com uma vista espetacular da floresta da Tijuca porque descobriu que, no prazo de um ano, um arranha-céu seria construído, acabando com a vista e desvalorizando o imóvel em R$ 50 mil. Ele disse isso aos compradores? Não. E eu também não considero esse delito tão pequeno diante do valor do prejuízo.
Apesar de os delitos pequenos estarem institucionalizados demais para notar ou serem tentadores demais para resistir, dizer "não" a eles beneficia a sociedade como um todo. E um "não" vigoroso o bastante pode alertar os distraídos e os fracos de espírito para que, em uma sociedade que se guia pela "lei de Gerson", nossa bússola moral possa nos apontar o caminho.

MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 21 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque -Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record); site: www.michaelkepp.com.br


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