São Paulo, quinta-feira, 27 de janeiro de 2005
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s.o.s.família

magdalena ramos

Ladras de esperma à solta

É cada vez maior o número de mulheres independentes e bem-sucedidas que, depois de fazer um alto investimento na carreira, se deparam com a vontade de ter um filho. Algumas delas, geralmente determinadas e auto-suficientes, não vêem maiores problemas em realizar tal desejo, mesmo à revelia do parceiro. Costumam ter uma personalidade autocentrada e manipuladora. Para elas, os fins justificam os meios.
Lia é executiva de uma multinacional e viaja bastante a trabalho. Sente-se frustrada porque terminou há pouco um namoro. Aos 38 anos, ela começa a renunciar, até com um certo alívio, ao projeto de um casamento tradicional. Mas não quer abrir mão de seu desejo maior: ter um filho a qualquer custo. Começa a perceber que tem de se apressar se quiser ser mãe, já que seu relógio biológico está próximo de ser desligado.


Quando a mulher precisa se dedicar ao bebê e ainda acumula trabalho, muitos homens sentem que não sobra espaço para eles


Ela embarca para mais uma viagem de trabalho pensando que um filho não inclui necessariamente um marido. A seu lado no avião está Carlos... Trocam olhares e espiam o que o outro lê. Quando a aeromoça pergunta: "Preferem carne ou frango?", os dois respondem "Carne", em uníssono. A primeira coincidência serve para iniciar uma conversa. Eles contam com muitas horas de vôo para ganhar intimidade.
Carlos vive um casamento morno, que já dura quatro anos, e tem um filho de dois anos. Ao longo da conversa, encanta-se com a desenvoltura dela, com seu poder de sedução e com suas idéias. Ele se dá conta de que há muito tempo não sentia atração por uma mulher. Os dois começam um caso tórrido.
Carlos se deslumbra com o sexo que há muito não curtia. Desde o nascimento do filho, ele vem se sentindo abandonado pela mulher. As relações sexuais foram se espaçando e o interesse dela voltou-se totalmente para a criança. Ele não é o único com dificuldades para viver essa relação triangular. Quando a mulher precisa se dedicar ao bebê e ainda acumula trabalho, muitos homens sentem que não sobra espaço para eles. Aparece então a necessidade de procurar em outro lugar o carinho e o sexo de antigamente, com uma mulher que lhes garanta uma relação exclusiva, sem filhos no meio.
Na volta da viagem, o caso continua. Carlos está confuso e angustiado. Ele gosta de sua mulher, mas há coisas que lhe faltam. Lia, por sua vez, gosta de Carlos, mas, por saber que é um homem comprometido, não bota muita fé no relacionamento. Está interessada, na verdade, em seu plano: mesmo que dependa de artimanhas, quer ter um filho.
Depois de um tempo, os amantes se desentendem. O prazer no plano horizontal parece não se equilibrar no plano afetivo. A culpa de Carlos e as exigências de Lia colaboram para o desfecho.
Um mês depois do rompimento, Lia vibra: está grávida! Querendo compartilhar sua felicidade, liga para Carlos. Mas a reação dele não poderia ser pior: "Não há porquê ter um filho que é produto de uma relação ocasional", diz. Sente-se traído. Afinal, ela garantiu que tomava pílula. Lia promete não mais incomodar. Vangloria-se dizendo que é forte e suficientemente autônoma para criar um filho sozinha.
Acontece que, entre a teoria e a prática, o hiato é grande. Imaginar, durante a gravidez -um período especialmente onipotente-, que uma mulher pode se virar sem ajuda é fácil. Já com a demanda de um bebê 24 horas por dia, tudo muda. Quando o filho nasce, Lia está sozinha e desprotegida. Sobrecarregada e com poucas forças para lidar com a situação, quer compartilhar a pesada carga. Precisa de um apoio afetivo e finalmente apela para Carlos.
Ele, porém, se recusa a ajudar. Lia então o obriga a assumir oficialmente a paternidade. O caso acaba na Justiça e um exame de DNA resolve, em parte, o problema de Lia. Afinal, também houve irresponsabilidade e descuido da parte dele, especialmente em tempos de Aids.
Para algumas mulheres, a maternidade é uma função essencial, e não há nada de errado em querer satisfazê-la. Mas será que não existem maneiras mais dignas de realizar esse desejo? Inseminação artificial, adoção ou até mesmo um filho com um amigo ou parceiro que concorde com o projeto talvez fossem opções melhores. Ao simplesmente "roubar" o esperma de um homem, as mulheres o obrigam a arcar com um filho não desejado e submetem a criança a ter um pai que conhecerá apenas pelo sobrenome. O fato de as mulheres terem muitas vezes sofrido ou ainda sofrerem atropelos por parte dos homens não justifica atitudes semelhantes.

Magdalena Ramos é psicanalista, professora do Núcleo de Casal e Família da PUC-SP e autora de "Introdução à Terapia Familiar" (ed. Ática).


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