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saúde
Igual, mas diferente
Conceito de neurodiversidade
defende que os
diferentes padrões de pensamento
devem
ser valorizados e serve de base para grupos
de autistas que rejeitam a idéia de serem curados;
tese é polêmica e opositores alertam para o risco de
ela afetar desenvolvimento de quem tem a síndrome
[...] Cérebros
de autistas
apresentam
alterações
em áreas
relacionadas
à emoção e ao
reconhecimento
de outras pessoas
AMARÍLIS LAGE
DA REPORTAGEM LOCAL
Problemas de comunicação. Comprometimento da sociabilidade. Alterações comportamentais. Essas são as três
principais bases para identificar uma pessoa com autismo
-síndrome descrita nos anos
40 que pode se manifestar de
formas severas, em que a pessoa parece totalmente alheia ao
que se passa ao seu redor, a níveis brandos.
Mas e se essas características
não constituírem um problema, e sim uma forma diferente
de pensar, tão válida quanto
qualquer outra?
Para os adeptos de uma nova
corrente chamada neurodiversidade, a resposta a essa pergunta é clara. Assim como não
há uma cor de pele "certa", afirmam, também não há uma forma "correta" de pensar.
O assunto, porém, é polêmico tanto entre parentes de autistas quanto no meio médico.
Há cerca de um mês, o debate
chegou oficialmente por aqui,
com a criação da primeira entidade voltada à defesa da neurodiversidade no país: o Movimento Orgulho Autista Brasil.
O grupo, que já desenvolvia
algumas ações desde o meio do
ano passado, integra agora uma
rede espalhada por diversos
países, especialmente na Oceania e na América do Norte.
O termo foi criado nos anos
90 por Judy Singer, especialista
em sociologia do autismo. Segundo ela, o conceito não se
restringe aos autistas, mas a todas as pessoas que, por qualquer motivo, possuem um padrão diferente de pensamento.
Singer decidiu se dedicar ao
tema após observar o surgimento de comunidades virtuais nas quais autistas trocavam experiências e questionavam a forma como eram tratados socialmente. Era a primeira vez, desde a década de 40,
quando o autismo e a síndrome
de Asperger (um tipo mais
brando de autismo) foram descritos cientificamente, que essas pessoas -notadamente conhecidas por terem dificuldades para se relacionar- se mostravam capazes de criar uma
rede social para defender seus
próprios interesses.
"Quatro aspectos principais
permitiram que isso acontecesse", disse Singer à Folha. O primeiro foi o surgimento de outro movimento que buscava direitos iguais: o feminismo. "O
feminismo deu às mães a autoconfiança necessária para mudar a idéia de que o autismo era
causado por mães que criavam
mal seus filhos", diz Singer.
Outro fator foi a ascensão
dos grupos de defesa de pacientes, aliada à diminuição da
autoridade dos médicos -que
demoravam a diagnosticar o
problema. Tudo isso foi acelerado pela internet. "Ela permitiu que as pessoas trocassem
informações livremente, sem a
mediação feita por médicos."
Ao mesmo tempo, o crescimento de movimentos políticos formados por pessoas com
diversos tipos de deficiência
estimulou alguns adultos autistas a pesquisar sobre a auto-representação.
A popularização da internet,
mais uma vez, teve um papel
fundamental nesse processo.
"Foi o que permitiu o movimento de auto-representação
dos autistas, pois é a "prótese"
essencial -algo que os transforma de indivíduos introvertidos e isolados em uma rede de
seres sociais, o que é um pré-requisito para uma ação social
efetiva, e em uma voz na arena
pública", afirma Singer.
Um desses primeiros grupos
foi a ANI (Autism Network International), que surgiu, em
1992, entre autistas da Austrália e dos Estados Unidos. De
acordo com Jim Sinclair, coordenador da rede, a idéia surgiu
porque os autistas não se sentiam totalmente confortáveis
nas comunidades sobre o assunto criadas por especialistas
e familiares de autistas.
Afinal, aquelas pessoas, por
mais interessadas que fossem
no tema, eram "neurotípicas"
-termo criado por autistas para definir quem tem um desenvolvimento neurológico considerado normal.
Entre outras diferenças, diz
Sinclair, as comunidades "neurotípicas" queriam proteger os
autistas, enquanto os próprios
autistas buscavam liberdade
para correr riscos (veja entrevista na página 8).
Ao longo dos anos, outros
grupos foram criados, assim
como sites disseminando a
neurodiversidade -entre eles,
o www.autistics.org, em que
há um link para o falso e divertido Institute for the Study of
the Neurologically Typical, que
brinca com as características
dos "neurotípicos".
Ali, o comportamento "normal" é ironicamente considerado "um distúrbio neurológico caracterizado pela preocupação com normas sociais".
Além disso, satiriza o site, "pessoas "neurotípicas" freqüentemente acham que a forma como vivenciam o mundo é a única correta, têm dificuldades para ficar sozinhos e são intolerantes com as diferenças".
Anticura
Seja em tom bem-humorado
ou não, a mensagem divulgada
por esses grupos costuma ser a
mesma: que o autismo é uma
diferença, não uma doença.
Ativistas mais radicais levam
a idéia de neurodiversidade
além. Defendem que remédios
e terapias alteram a subjetividade única do autista e criticam
o que consideram uma prescrição excessiva de drogas para
controlar o comportamento.
Na contramão, surgiram organizações como a "Cure Autism Now" (cure o autismo agora), que afirma já ter destinado
US$ 31 milhões a pesquisas voltadas a evitar ou reverter quadros de autismo.
De acordo com o psiquiatra
Marcos Tomanik Mercadante,
professor da Universidade
Presbiteriana Mackenzie e da
Unifesp (Universidade Federal
de São Paulo), características
pessoais passam a ser consideradas doenças quando levam a
uma dificuldade de adaptação.
"Parte do conceito [da neurodiversidade] é correta. Os autistas têm um cérebro diferente, e
isso não é, necessariamente,
uma patologia. Mas a maioria
deles não consegue conduzir a
própria vida. É um modo de ser
no mundo; mas, neste mundo,
um modo desfavorável."
Para a presidente da Associação Brasileira de Autismo, Marisa Silva, o risco da visão anticura é desestimular a realização de tratamentos que podem
melhorar a qualidade de vida
dos autistas.
"Uma criança com autismo
leve que não for trabalhada terá, quando adulta, tantos problemas quanto um autista que
era muito comprometido na infância. É um problema sério,
não um modo de ser", diz ela,
que tem um filho autista. "Jamais diria que é o jeito dele. Ele
é muito comprometido. Gostaria que houvesse uma cura."
"Se minha filha fosse curada,
ela não seria a Natália", diz
Eliana Boralli, mãe de uma jovem autista de 20 anos e fundadora da Associação dos Amigos
da Criança Autista. Ainda assim, afirma, gostaria de ter a
oportunidade de dar à filha a
opção de ser ou não autista.
Remédios
Não existe uma medicação
específica para autismo, mas
muitas pessoas com esse diagnóstico tomam remédios para
controlar aspectos como irritabilidade e problemas de sono.
Para Judy Singer, os remédios só devem ser administrados para aliviar sofrimento,
"mas não para mudar as pessoas para que elas se encaixem
em idéias limitadas sobre o que
um ser humano deveria ser".
É uma opinião parecida com
a de Fernando Cotta, presidente do Movimento Orgulho Autista Brasil. "As pessoas precisam respeitar o autista. Isso
não significa excluir a possibilidade de uma medicação. Se
ele tiver problema de atenção,
pode tomar algo que possa ajudá-lo, assim como quem tem
gripe toma antigripal."
Instituições flexíveis
Judy Singer defende que algumas questões podem ser resolvidas sem remédios. "Vamos
supor que uma criança autista
seja muito irritável. Por que isso ocorre? Não será porque o
ambiente escolar rígido não
permite que ela se encaixe?"
As instituições, diz, devem se
tornar mais flexíveis à inclusão
de autistas. As escolas, por
exemplo, deveriam adotar um
modelo que reconheça múltiplas inteligências. "Essa variedade não é uma grande exigência e já existe na Austrália", diz.
Valeria Paradiz criou, nos Estados Unidos, a Aspie, uma escola voltada para crianças autistas. "Aspies" também é o
apelido pelo qual alguns portadores da síndrome de Asperger
se identificam. Defensora de
uma visão "não patológica" do
autismo, ela diz que a luta pela
neurodiversidade se assemelha
a qualquer movimento por direitos civis e que a sala de aula é
um dos melhores lugares para
ensinar essas crianças a exigir
respeito às suas diferenças.
"Aqui, elas começam a
aprender os principais elementos da experiência autista, percebem que a forma como o autismo é retratado varia muito e
que a própria perspectiva delas
é tão válida quanto a de especialistas e qualquer outra."
Para Kika Feier Goulart, mãe
de Cibele, que tem 13 anos e é
autista, a inclusão escolar é um
dos principais desafios no Brasil. "Eles são muito visuais, e os
professores não se esforçam
para adaptar a aula a essa necessidade. Além disso, ou esperam demais dela, porque há o
mito de que todo autista é um
gênio, ou esperam menos do
que ela pode oferecer."
O outro lado
Uma crítica feita aos grupos
que pregam a auto-representação e a anticura é que eles não
se referem a todos os autistas,
mas apenas àqueles que têm
síndrome de Asperger.
Casos de autistas famosos e
bem-sucedidos, como a PhD
em ciência animal Temple
Grandin, ressaltam, são a exceção, não a regra. Estima-se que
70% dos autistas tenham algum tipo de retardo mental.
Esse dado vem sendo questionado, pois se acredita que os
testes aplicados não eram capazes de contemplar as capacidades dos autistas. Mas muitos
pais relatam problemas intelectuais sérios nos filhos.
A crítica vem até de Singer.
"Não concordo com pessoas
que são obviamente autistas de
alta capacidade e alegam falar
por "todos" os autistas", diz. A
mãe e a filha de Singer têm a
síndrome, e ela criou o primeiro grupo de apoio para pessoas
com pais autistas do mundo.
"Nunca tive medo da idéia de
que há um lado ruim para a diferença neurológica", diz ela,
que acha que autistas não são
capazes de criar os filhos sozinhos. "Fomos muito atacados
por representantes autistas,
que não conseguem lidar com
essa idéia. Para mim, a neurodiversidade inclui um quadro
realista de prós e contras. Há
aspectos do autismo que causam sofrimento, e seria ótimo
se isso pudesse ser curado. Mas
não acho que exista uma cura
capaz de tirar os aspectos negativos e reter a diversidade genética da humanidade."
Não há uma perspectiva de
cura para o autismo, pois ainda
sequer se sabe o que o causa.
Algumas hipóteses já foram
descartadas pela ciência, como
a "culpa" dos pais na criação
dos filhos e a ação de vacinas,
diz o psiquiatra Mercadante.
Os estudos atuais são voltados
ao papel da herança genética e
de alguns fatores ambientais.
O que se sabe é que os cérebros de autistas são diferentes
em três áreas principais: a
amígdala, ligada à emoção e ao
comportamento social, o giro
fusiforme e o sulco temporal
superior. As duas últimas costumam ser ativadas quando se
olha para a face de alguém ou se
escuta uma voz humana. Os autistas, ao verem ou ouvirem alguém, ativam outra área, responsável pela identificação de
objetos.
O autismo costuma aparecer
antes dos três anos -nessa idade, diz Mercadante, há uma
"poda neural" que reestrutura
o cérebro. Suspeita-se que, nos
autistas, essa "poda" seja diferente, alterando alguns circuitos cerebrais. Por isso, crianças
autistas podem regredir e até
parar de falar nessa idade.
Foi o que aconteceu com Natália Boralli. "Ela ficou quase
um ano e meio sem falar nada",
lembra a mãe dela, Eliana. Até
que, no aniversário de três anos
da filha, ela a levou a uma loja
de artigos para festa e deixou
Natália livre para observar tudo. A menina ficou encantada
com os enfeites da boneca Moranguinho, e Eliana decidiu decorar a casa com o tema, esperando vencer um pouco a barreira emocional do autismo.
"Coloquei tudo ao redor dela
e disse: "Isso é para você, porque é seu aniversário e eu te
amo". Então, ela, que nunca fixava o olhar em nós, me olhou
por cinco segundos e disse
"mã"."
(COLABORARAM FLÁVIA MANTOVANI E THIAGO MOMM, DA REPORTAGEM
LOCAL)
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