São Paulo, terça-feira, 27 de setembro de 2011
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OPINIÃO

Uma gramática dos afetos

Preferimos nos dopar a ter de encarar o exercício lento e inseguro de pensar de outra forma

VLADIMIR SAFATLE
COLUNISTA DA FOLHA

Desde que a psicanálise apareceu anuncia-se seu fim. Esse fim nunca chegou, embora algo como uma "cultura psicanalítica" presente nas sociedades ocidentais tenha tido momentos de declínio.
Uma das maiores peculiaridades da psicanálise está no seu jeito de constituir um novo modo de compreensão de nossos afetos e conflitos.
Uma nova gramática dos afetos nasceu com ela, que moldou, de maneira decisiva, a autopercepção do sujeito contemporâneo. Nossa visão de família, sexualidade, moralidade e corpo são incompreensíveis sem a referência à psicanálise.
Os anúncios insistentes do seu declínio podem ser vistos não só como uma querela a respeito da eficácia de dispositivos clínicos. Trata-se de fornecer às nossas sociedades ocidentais outra gramática dos afetos.
Alguns podem achar estranha a afirmação segundo a qual o destino de uma prática clínica não estaria, necessariamente, associado à reflexão sobre sua eficácia.
A psicanálise nunca foi um conjunto estático de procedimentos e conceitos. Um leitor atento de Freud sabe que ele age a todo momento como alguém testando e abandonando hipóteses.
Além do que, o debate psicanalítico modificou-se graças a Jacques Lacan, Donald Winnicott, Bion, Otto Kernberg, entre tantos outros.
O que não mudou e, por isso, define a perspectiva psicanalítica de maneira decisiva, é a crença de que o sofrimento psíquico não é dissociável da compreensão que o paciente tem de sua doença. O sofrimento coloca em questão a vida do sujeito, seus ideais de autorrealização, seus valores morais, sua ideia de si mesmo.
É uma maneira de lembrar que não é só o corpo que nos faz sofrer. Podemos sofrer por nossas ideias e valores. Podemos até fazer com que o corpo seja veículo da dor causada por ideias e valores.
Nesse sentido, uma das grandes contribuições da psicanálise foi a compreensão de que a constituição de ideias e valores que orientam nossa vida é sempre conflitual e contingente. Tais conflitos voltam em vários momentos, nos obrigando a produzir novos acordos, a pensar de outra forma.
E nada mais aterrador do que se ver na necessidade de pensar de outra forma. Preferimos nos dopar a encarar o exercício lento e inseguro de pensar de outra forma.
Essa é, talvez, a essência da especificidade da psicanálise. Sua gramática dos afetos nos traz uma maneira de nos descrevermos em que noções como conflito, contradição, contingência e insegurança são fundamentais. Sua clínica visa permitir ao sujeito desenvolver habilidades para conjugar tal gramática.
Nenhum psicanalista responsável negaria hoje o uso de medicamentos em situações de quebra subjetiva. A questão é a crença de que o tratamento deva ser reduzido ao setor da farmacologia. Tal redução é feita em nome da implantação de outra gramática dos afetos, no interior da qual nossa vida poderia ser otimizada, calculada a partir de equações que nos garantiriam boa performance no trabalho, na vida sexual, no casamento.
Uma vida em que a linha separando a normalidade da patologia é feita em traços não problemáticos. Tudo rápido, mesmo que precisemos tomar antidepressivos anos a fio. Por isso, por trás de querelas sobre modelos de tratamento psiquiátrico, sempre encontraremos uma questão maior, a saber: que tipo de pessoa queremos ser.


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