São Paulo, terça-feira, 27 de setembro de 2011
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OPINIÃO

"A psicanálise tem a falha de ser imune ao presente"


ESSA TEORIA NÃO É CIÊNCIA: FALTAM METODOLOGIA E RESULTADOS


HÉLIO SCHWARTSMAN
ARTICULISTA DA FOLHA

A psicanálise sobrevive com vigor na Argentina, no Brasil e na França. No resto do mundo, seu estado varia de decadente a agonizante. E, mesmo no primeiro grupo, ela vem sofrendo ataques, como atesta a publicação, em 2005, na França, de "O Livro Negro da Psicanálise", obra coletiva que reúne 40 artigos contra Freud, alguns deles bastante virulentos.
Em 2010, foi a vez do polêmico filósofo Michel Onfray desancar Freud, em 624 páginas do seu livro "O Crepúsculo de um Ídolo". Onfray diz que psicanálise não passa de religião, não tem mais efeito do que placebos e acusa Freud de não medir esforços para obter dinheiro e glória.
"O Livro Negro" e "Crepúsculo" traduzem para o francês humores antipsicanalíticos que emanam do mundo acadêmico americano, onde a visão preponderante é a de que Freud foi um charlatão. De minha parte, acho difícil sustentar que a psicanálise seja uma ciência. Parece-me, entretanto, historicamente falso, além de injusto, negar a Freud um lugar no panteão dos pioneiros.
Afinal, ele popularizou a noção de inconsciente e ressaltou sua importância nos processos mentais humanos. O ocaso de Freud nos EUA teve início nos anos 50, com os primeiros fármacos psicoativos. A constatação de que drogas provocavam alterações no psiquismo abriu uma nova avenida para pesquisas.
Ressonâncias magnéticas funcionais e tomografias por PET completaram o arsenal da neurociência para esquadrinhar o cérebro. Paixões e pensamentos deixam de ser abstrações para se tornar manifestações físicas nos neurônios. Paradoxalmente, o próprio Freud, que jamais renunciou à pretensão de fazer ciência, teria aplaudido o avanço da psicofarmacologia.
No inacabado "Esboço de Psicanálise", de 1938, escreveu: "O futuro provavelmente vai nos ensinar a influenciar diretamente as quantidades (psíquicas) de energia e sua distribuição no aparelho psíquico por meio de matérias químicas especiais. Talvez surjam ainda outras possibilidades ainda desconhecidas de terapia; por enquanto nós ainda não temos nada melhor que a técnica psicanalítica à nossa disposição".
Aparentemente, esse futuro chegou -em que pese a forma ainda grosseira com que atuam os psicofármacos. Como foi formulada, a psicanálise não é ciência. Faltam-lhe metodologia, resultados mensuráveis e conteúdo empírico para reclamar estatuto epistemológico.
Pelo menos para mim é especialmente chocante a ideia de que o principal que havia a ser dito sobre psiquismo humano foi dito por Freud há mais de 70 anos e, de lá para cá, nada de muito relevante surgiu.
Se é verdade que as ciências padecem do defeito de olhar pouco para seu passado, a psicanálise tem a falha de ser imune ao presente. A verdade já foi revelada pelo profeta vienense, não havendo mais nada (ou quase nada) a acrescentar. E essa é uma característica que, creio, dá razão a Onfray quando afirma que a psicanálise se estruturou de forma semelhante às religiões.
Para prová-lo, basta conferir o alto número de defecções, rompimentos e excomunhões entre seus membros. Só que nem a precariedade epistemológica da psicanálise nem as picuinhas levantadas por Onfray, como as supostas infidelidades conjugais de Freud ou suas simpatias pelo fascismo, são suficientes para tirar do vienense o mérito de ter posto o inconsciente na ordem do dia.
Avanços da neurociência mostram que esse conceito é mais importante do que suspeitava o pai da psicanálise. Experimentos nesse campo já colocam em dúvida até a existência do livre-arbítrio. Ter percebido isso num mundo vitoriano é uma façanha.
Só isso basta para colocar Freud no mesmo patamar de outros grandes pensadores que, munidos só da especulação, contribuíram para que a humanidade lançasse um novo olhar sobre si mesma.


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