São Paulo, quinta-feira, 28 de fevereiro de 2002
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outras idéias - anna veronica mautner

Miojo

Naqueles tempos, comer mal era divertido. Meses depois ainda se falava do macarrão empapado ou cru, das bolachas moles, do pão borrachento e das latas de doce

Ter comida quente em condições adversas, longe de uma boa cozinha, é uma questão que nos preocupa desde que o mundo é mundo. Lembremo-nos do pão ázimo e das frutas secas que os nômades carregavam desde o tempo de Moisés no deserto. Lembremo-nos ainda das carnes preparadas para durar -secas ou defumadas- que cavaleiros e andarilhos levavam em seus farnéis. E não vamos nos esquecer da farinha e do feijão tropeiro que alimentaram os viajantes que cruzavam o Brasil.
E, hoje, como se arruma o viajante quando está longe de casa? E o apressado e o preguiçoso ou ainda as crianças que dão seus primeiros passos na cozinha? Basta ter à mão sopas de pacote ou miojo (não sei mais se isto é marca ou nome).
Alguns poderão dizer que a comida congelada está disponível em qualquer esquina. Mas ela tem muitas limitações quando se está longe de um freezer e de um microondas. O fechamento a vácuo é o grande amigo do nômade moderno e também dos notívagos e das crianças. Para levar na bagagem, latas são muito pesadas, além de ocuparem muito espaço. Os pacotes de sopa, molhos ou miojo fazem bonito com muito poucos recursos. Basta uma panelinha, fósforo e um fogareiro ou uma espiriteira. Com esse pouco já estão atendidos os famintos de beira de estrada, os boêmios nas madrugadas e as crianças que querem comer imediatamente ou imitar a mãe na cozinha. É fácil. Nem é preciso ler as instruções de uso. Basta ter visto, alguma vez, alguém preparar.
Até a década de 60, quando a nossa indústria alimentícia ainda mal e mal engatinhava, só existiam as latarias e, mesmo assim, com pouca variedade. O conservante dominante era a gordura. Ao abrirmos uma lata de feijoada, encontrávamos uma camada de um dedo de gordura, que desaparecia quando esquentada. A presuntada e o "corned beef" também vinham envoltos em gordura. Era só fatiar e jogar na panela. Com o tanto de gordura que traziam, não estragavam de jeito nenhum durante a viagem.
Naquele tempo, quem acampava alimentava-se à base de macarrão, ervilha, sardinha, feijoada e presuntada ou "corned beef". Praticamente se misturava tudo, e estava feita a gororoba. Com os modernos envelopes de sopa, miojo e molho, as refeições são muito mais variadas e bem-feitas. Naqueles tempos, comer mal era divertido. Meses depois ainda se falava do macarrão empapado ou cru, das bolachas moles, do pão borrachento e das latas de doce, que, se não fossem devoradas logo, eram capazes de seduzir todas as formigas do mundo.
A tecnologia do a vácuo nos roubou esse sofrimento divertido. Lembrando essas e outras histórias, foram-me vindo as marcas que desapareceram sem que eu percebesse.
Será que ainda existe Armour, Swift, Wilson, Anglo, Petybon, Coqueiro, Rubi, Cica, Aymoré, Duchen, minhas velhas companheiras de férias? Se ainda existe alguma dessas, que me perdoe. Elas sumiram sem que eu me desse conta disso. E, entre as coisas que levávamos, também desapareceu aquele sapato de lona em cima e corda trançada embaixo -a alpargata. Acredito que a havaiana e o tênis sejam filhos e netos dela. Mas alpargata não é comida. Deixa pra lá. Mas era muito confortável.
Voltando à comida, lembro que a feijoada era muito saborosa e a presuntada bem fritinha era uma delícia quando comida com pão velho e borrachento. Tudo isso se misturava a uma sensação de alegria e liberdade apesar de todo o desconforto.
Essa comida da pressa, do principiante e do preguiçoso nunca foi o ideal de nenhum nutricionista. Mantida por conservantes químicos, dispensa a gordura.
A inserção dos envelopes a vácuo na nossa vida não foi repentina. Foi tão silenciosa e mansa quanto foi a agonia e morte das marcas de antigamente. Os recém-vindos foram ocupando as prateleiras e gôndolas e oferecendo suas mil e uma qualidades para as nossas mil e uma necessidades.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora), escreve aqui todo mês; e-mail: amautner@attglobal.net



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