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São Paulo, quinta-feira, 28 de agosto de 2003
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outras idéias - dulce critelli

Agimos às cegas no mais das vezes. Quem compreende o sentido de nossas ações são nossos espectadores, que podem observar a teia global em que nossos gestos se inserem

Sem garantias

Atravessando as histórias de Sherazade nas "Mil e Uma Noites", há a alusão a um certo livro em que o sultão escolhia e fazia escrever, com letras de ouro, algum feito extraordinário praticado por um dos súditos do reino e que o distinguisse dos demais.
Os gregos antigos também se empenhavam na busca de reconhecimento para os atos e palavras que os exibissem em sua excelência, nos seus virtuosismos. Participavam de todos os eventos e embates realizados na "ágora", ou praça pública, na expectativa de serem vistos e ouvidos pelos seus iguais. Não seria, portanto, nenhum governante, mas seus próprios pares, que escolheria os gestos dignos de menção. E não seria um livro, mas a memória das futuras gerações, o lugar em que seus feitos ficariam inscritos, garantindo-lhes imortalidade.
Em ambas as experiências, não eram os atores do gesto, mas seus espectadores, quem o elegia como incomuns; os gestos escolhidos eram os extraordinários, e não os banais; e o tempo mirado era o futuro, ainda que o feito fosse realizado e colhido no presente.
Na nossa sociedade, embora não seja para todos, é a mídia, com suas TVs, jornais e revistas, que exerce a dupla função de ser o livro de ouro dos nossos gestos e o juiz que os seleciona. Todavia, como o que lhe interessa é a notícia, o tempo que privilegia é o presente imediato e, assim, flagra comportamentos e dizeres que, no mais das vezes, não só são os mais banais e corriqueiros como também exibem as nossas piores excelências. Como o presente sempre se resguarda para o futuro e como nunca se sabe a que feitos os espectadores darão lugar na sua memória, as bobagens e banalidades realizadas sempre podem grudar em seus atores como estigmas indeléveis e irreversíveis.
A mídia não confere sua ampla publicidade a todos, mas nenhum de nós escapa do testemunho daqueles com quem convive nem pode controlar a memória que guardarão de nós. Se pudéssemos escolher, por que ato ou palavra gostaríamos de ser lembrados?
O resultado de nossos atos e palavras é sempre uma incógnita. O que acarretam é imprevisível. Dependem da reação dos outros, das suas interferências, das repercussões e consequências que tiverem no tempo e no espaço. Dependem também dos nossos próximos gestos, que podem, de alguma forma, modificar o destino dos anteriores. Não é por outra razão que Hannah Arendt afirma que nunca poderemos dizer quem um homem é, mas quem ele foi. Apenas a morte encerra a cadeia infindável de nossas ações.
Imprevisível e totalmente fora do nosso controle estão o sentido e o significado de nossos gestos e discursos. Podemos saber as nossas intenções, mas elas pouco contam para a significação do que fazemos e dizemos. Agimos às cegas no mais das vezes. Quem compreende o sentido de nossas ações são nossos espectadores, que, como se instalados numa platéia, podem observar a teia global em que nossos gestos se inserem. Para os que observam e julgam a banalidade ou o extraordinário das nossas ações, os atos são aparentes, e as intenções, invisíveis.
Não julgamos, não compreendemos o significado nem controlamos o resultado de nossos gestos. À mão, estão apenas (e é muito!) as decisões que tomamos sobre os atos que queremos praticar e as palavras que queremos dizer. Ao nosso alcance, está apenas (e é muito!) o empenho em ajustarmos nossas intenções aos nossos gestos e em provocarmos uma reação desejada. Mas sem garantias.


DULCE CRITELLI, professora de filosofia da PUC-SP, é autora dos livros "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica do Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana; e-mail: dulcecritelli@existentia-br.com


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