São Paulo, quinta-feira, 28 de setembro de 2006
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Outras idéias - Michael Kepp

Casulo e borboleta

Minha mulher, Rosa, diz que sempre que viajamos nas férias sai de meu casulo uma borboleta. O casulo a que se refere é o escritório em que escrevo, a casa em que hiberno e nosso bairro carioca do qual raramente me aventuro a sair. A borboleta seria a criatura inquieta e vibrante que me torno quando estou em um ambiente novo e agradável.
Eu também notei a metamorfose. Quanto mais remoto nosso destino, mais energizado eu fico. O peixe na brasa que uma colônia de pescadores compartilhou conosco na ilha do Caju, no Piauí, levou a um animado papo que trouxe à tona minha Morpho azul interior.
Há alguns anos, visitando o Museu Chagall, nas colinas sobre Nice, foram as cores fortes do pintor e suas personagens voláteis que me deram asas. Eu convenci Rosa a se aventurar em uma carona de volta à cidade para ver quem conheceríamos. O mexicano que nos levou se tornou um amigo com quem viajamos pela Provença. Esse não é o Mike (eu) que mora no Rio, um cara que não se esforça para conhecer os vizinhos nem o nome dos porteiros.
Eu conheci três vizinhos do prédio ao lado só porque os encontrei em viagens. Rosa reconheceu um deles num restaurante em Tiradentes e os outros dois numa rua de São Luís. "Olhe, o Guido e a Helena", ela disse. "Quem?", perguntei. Tive de ir ao Maranhão para conhecer um casal que morava no prédio vizinho há quase uma década. Isso me fez ver como meu casulo me deixa isolado, fazendo-me esquecer algo bem básico: como as pessoas são fascinantes.
Viagens também fazem grupos ficarem mais coesos, forçando a proximidade física de seus membros. Aprendi isso quando viajei com Rosa e seus dois filhos para Paraty. Nós quatro, que nunca havíamos jogado juntos, brincamos de mímica, e o jogo nos mostrou como jogávamos bem juntos.
Quando voltamos de férias, minha natureza lúdica e vibrante desaparece. Uma vez, um casal carioca que conhecemos na Bahia nos convidou para ir à casa deles no Rio. E eles ficaram chocados com a metamorfose.
Ele perguntou se eu estava doente, e ela quis saber se algo havia me deixado na fossa. Eles também não acreditaram quando eu disse que estava bem. Por quê? De volta ao meu habitat, meus olhos perderam o brilho, minha voz perdeu o entusiasmo. E, apesar de nossas tentativas, nunca mais nos vimos. Rosa, que vê nossas férias como a chance de passar tempo com um marido mais atraente, me lembrou por quê.
"As pessoas que te conhecem nas viagens presumem que "o Mike de férias" é quem você é", ela disse, "e se decepcionam quando aquela borboleta fica com jeitão de lagarta."

[...] Viagens também fazem grupos ficarem mais coesos, forçando a proximidade física de seus membros


MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 24 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)
www.michaelkepp.com.br


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