São Paulo, quinta-feira, 28 de outubro de 2004
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outras idéias

Michael Kepp

Adultério como antídoto?

Uma crônica recente publicada no jornal "O Globo" mais parecia uma carta fria de um marido para a mulher que acabara de trair. "Traição é uma palavra dura demais" para um ato "inofensivo", "romântico" e "alegre", que "combina cada vez menos com a realidade sexual vigente", dizia a crônica. O texto afirmava que "romances paralelos" não deveriam gerar culpa ou vergonha porque "sexo (...) não é feito contra uma terceira pessoa. Sexo é sempre a favor, sempre pró e sempre egoísta". O que faz esse argumento ainda mais incomum é o sexo de sua autora, Martha Medeiros.
Sua gêmea americana é Laura Kipnis, cujo novo livro, "Against Love" ("contra o amor"), argumenta que, quando a paixão matrimonial inevitavelmente morre, o adultério é o antídoto. Kipnis critica livros de auto-ajuda e terapias que dão a você o trabalho de reviver o efêmero desejo sexual que condena o casamento à morte. A atração do adultério, diz ela, é que não dá trabalho.
Kipnis evita a questão moral da traição da confiança de alguém que se ama sem sentir culpa ou vergonha? O primeiro (e último) caso que tive, 30 anos atrás, me fez sentir tão mal que eu não conseguia nem satisfazer a outra. Não foi exatamente a farra que Kipnis e Medeiros prometeram. E isso foi antes de a Aids tornar qualquer farra sexual perigosa.


A possibilidade de perder o amor de alguém é um trauma emocional tão grande que as pessoas usam placebos sexuais -de casos a paixões cibernéticas- para driblar essas conversas


Meu caso me fez ver como minha relação estava periclitante. A infidelidade pode criar uma dinâmica nova. Pode fazer com que você veja sua sorte ou infelicidade, tornar um casamento ruim suportável ou criar uma união nova e mais feliz. Mas desejar ter um caso -especialmente quando a tentação é constante- não deveria bastar para dar início a uma conversa sobre problemas conjugais e suas soluções, sendo uma a separação?
Idealmente, sim. Mas a possibilidade de perder o amor de alguém é um trauma emocional tão grande que as pessoas usam placebos sexuais -de casos a paixões cibernéticas- para driblar essas conversas. Essas infidelidades podem ser perdoadas, mas não esquecidas, e em geral deixam feridas que nunca se fecham. Não seria (como Bill Clinton descobriu) um preço alto demais para algo que não significa nada?
Evidentemente, cada caso é um caso. Mas eu sou a favor da fidelidade, mesmo que só possa ser mantida através de ligações monogâmicas com uma série de mulheres. A monogamia envolve sacrifício, mas, cedo ou tarde, casos superficiais também. E, quando os casos superficiais se transformam em casos sérios e longos, não estariam destinados a ver o desejo sexual acabar à míngua -o que, segundo Kipnis, condena o casamento à morte?
Os argumentos das autoras não são dirigidos especificamente às mulheres, mas atraem um público feminino que não tem direitos sexuais iguais e está sempre pronto a crer que liberação significa adotar atitudes machistas. Como suas versões pseudofeministas do machismo podem ser, como elas sugerem, um avanço?
Alguns anos atrás, uma colunista do jornal "The New York Times" escreveu que a mulher moderna escolhe seu companheiro como os homens, com base apenas no apelo e na performance sexual. "Agora as mulheres querem caubóis (...) que não sabem a diferença entre um Flaubert e um "flambé", entre "Rei Lear" e "Rei Leão'".
Eu discordo. A maioria das pessoas quer um companheiro leal que satisfaça suas necessidades, explore seu universo e faça sacrifícios inimagináveis. Não é uma visão romântica. Assim como a equação-base de todo relacionamento, clandestino ou não: você recebe da relação o que dá a ela.

MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 21 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro", (Record); www.michaelkepp.com.br
Leia na próxima semana coluna da psicanalista Anna Veronica Mautner



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