São Paulo, quinta-feira, 29 de março de 2007
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Outras Idéias - Wilson Jacob Filho

Neurônios se multiplicam

Participei de um evento inesquecível. Após um longo dia de debates, em que o conhecimento sobre geriatria e gerontologia foi levado aos extremos de sua diversidade, esperávamos pela anunciada conferência magna, aquela que tradicionalmente sintetiza a essência do que se debatera até então.
Estavam reunidos representantes da academia -alunos ávidos por novas experiências, jovens profissionais interessados em demonstrar aos mestres as suas convicções e professores que misturavam o orgulho do dever cumprido à difícil tarefa de complementá-lo. Pontualmente, adentrou à sala o convidado. Avaliou o ambiente onde deveria atuar e, com alguma dificuldade, caminhou ao seu assento e aguardou o fim do debate.
Sentado diante de todos, começou a falar. Como única necessidade, um copo d'água. Com voz ainda discreta, anunciou já ter ultrapassado os 93 anos e revelou sua intenção de apresentar seus pensamentos por algum tempo e de conhecer os nossos em seguida. Não levou nenhuma anotação ou recurso audiovisual. Umedeceu os lábios e pôs-se a falar sobre sua paixão: os livros.
Usou o assunto, porém, para nos mostrar que uma longa vida tem sentido quando movida pela paixão. Mais que isso, que essa é a melhor maneira de justificar o despertar de tantos dias, incluindo aqueles que sucedem às tristezas. Falou-nos da importância de dividir com os outros o nosso bem maior. De quão efêmero é cada homem na Terra e de quão duradoura pode ser a sua obra.


[...] José Mindlin nos mostrou aquilo que os cientistas vêm tentando comprovar: os neurônios podem se multiplicar


Cada convicção apresentada foi seguida de exemplos, que deram ainda maior ênfase àquilo de que acabara de nos convencer. Sentimo-nos visitando os sebos onde adquiriu seus primeiros exemplares, os caminhos sinuosos que o levaram a obter os mais raros, a plena cumplicidade com a família no construir de seu acervo.
Terminasse ali a sua participação, já teria sido memorável, mas ele queria saber qual o efeito de suas palavras naquele grupo de pessoas em que poucas, como eu, tinham mais do que a metade da sua idade. Confessou, sem medo, que os prazeres atuais são comparáveis aos de outrora, mas que as decepções são hoje mais facilmente superáveis. Falou da importância das perdas, que invariavelmente ocorrem com o passar do tempo, revelando, porém, sua crença no amanhã.
Chegou ao ápice quando, depois de nos ter aconselhado a não ter muito juízo, respondeu com qual idade alguém deve ler um autor considerado "para maduros". Modestamente, disse tê-lo lido em três momentos da vida em diferentes idiomas.
Em nenhuma delas lhe agradou. Num jovial sorriso, admitiu a possibilidade de não estar ainda suficientemente maduro para apreciá-lo. Nesse curto período de convivência, nada poderia ser melhor. José Mindlin nos mostrou, da forma mais singela e incontestável, aquilo que há muito os cientistas vêm tentando comprovar. Em condições favoráveis, os neurônios podem se multiplicar.
WILSON JACOB FILHO, professor da Faculdade de Medicina da USP e diretor do Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas (SP), é autor de "Atividade Física e Envelhecimento Saudável" (ed. Atheneu)

wiljac@usp.br


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