São Paulo, quinta-feira, 29 de junho de 2000
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outras idéias

Decadência Dentária

Gilberto Felisberto Vasconcellos

Desde menino atazano-me em divã de dentista, supondo que a conservação dos dentes depende de uma boa escovada com fio dental.
Engano.
A escova de dentes foi inventada por volta de 1780, mas antes disso povos primitivos da América, África e Pacífico tinham dentes ótimos.
É impossível encontrar dentadura que seja perfeita nas damas e cavalheiros das atuais sociedades civilizadas, sobretudo depois da Renascença e do aparecimento da imprensa. Com a agricultura, a cárie surge no período neolítico da humanidade, mas é a cárie ainda de leve.
Em numerosas caveiras e crânios pré-históricos, há pouquíssima incidência de cárie, assim como neles foi encontrada uma excelente articulação dos dentes superiores com os inferiores, para não dizer a ausência de paradentose que arruina a gengiva.
Múmias egípcias não mostravam sinais de tártaro.
A degeneração dos dentes é o resultado da maneira como o homem moderno se alimenta. É mais o alimento e a sua mastigação do que a higiene dentária. Carnívoros, os esquimós não tinham em seu léxico a palavra "cárie" e nunca fizeram uso de escova de dentes.
A higiene da boca não é o recurso mais importante para evitar as ruínas dos dentes. Nem escova, nem pasta de dente. O mais importante na saúde dentária é a simbiose da qualidade da cozinha com o ato da mastigação. Do fogão à privada.
A principal razão de ser do dente é mastigar, mastigar sempre, pois o desempenho fisiológico condiciona a morfogênese. Quanto maior a trituração dos alimentos, mais rara a cárie.
A tendência nos últimos tempos é nos engazoparmos de papinhas, mingaus, sucos de frutas, conservas, pão macio molhado no café com leite, dispensando o prazer da mastigação, da manducação. Engolimos tudo às pressas. Self-service. Bandejão. Quilinho.
O mundo inteiro imita o divórcio do talher made in EUA, isto é: a separação do garfo e da faca. Come-se cada vez mais com as mãos. É o reinado absoluto do sanduíche.
A decadência dentária está vinculada aos alimentos descorticados e desnaturalizados. Alimentos artificiais. O exemplo do pãozinho é bastante significativo da mudança operada nos últimos séculos. O processo empregado em sua fabricação facilita o trabalho da mastigação.
Do pãozinho vai se eliminando a farinha completa, sendo assim empobrecida em suas albuminas, vitaminas e sais. Muito pão chamado de pão integral é fajutado. A alimentação desnaturada corrói os dentes. Eis o melancólico destino da boca no mundo moderno: ou "smile" prótese ou ruína-banguela.


GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (ed. Espaço e Tempo), entre outros



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