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São Paulo, quinta-feira, 30 de janeiro de 2003
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outras idéias - gustavo ioschpe

Quando os critérios de excelência dependem de algo subjetivo como "paixão" e "comprometimento", abre-se uma vala para o maniqueísmo persecutório

Haaaaaja coração!

A ciclicidade da história é fenômeno constante não só nas artes -depois do barroco, o neoclassicismo- e na economia -períodos de desenvolvimento antecedem intervalos recessivos- como também na política, especialmente no que diz respeito às lideranças. Assim como há a fadiga de materiais na física, também no poder há um certo cansaço dos liderados em relação a seus governantes. Depois de um canalha como Nixon, segue-se um insosso como Carter, que é sucedido pelo personalismo de um Reagan, cujo sucessor é um burocrata frio (Bush "père"), posteriormente derrotado pelo fulgurante Clinton. Vemos na nossa democracia incipiente fenômeno parecido: depois de um aloprado como Collor seguiu-se o governo dos tecnocratas uspianos comandados por FHC. Natural que depois de oito anos de tucanato, o pêndulo volte-se novamente em busca da paixão, da emoção, do sentimento. É claro que a eleição de Lula também se deve a um descontentamento mais aprofundado com um modelo econômico excludente, mas é inescapável a percepção -especialmente quando se observa a manifestação popular na cerimônia de posse- de que há um componente pessoal poderoso na maneira pela qual se escolhem candidatos.
Assim, era de todo esperada a supremacia do apelo ao sentimental, ao personalismo e à emoção neste governo que se instala, em detrimento da frieza e até de uma certa empáfia do rei destronado. O que não é nem esperado nem saudável é o grau da metamorfose: não se trata apenas de dar primazia ao personalismo ("Só quem passou por isso pode resolver o problema"), mas sim de praticamente exorcizar o saber, o conhecimento técnico, como se a excelência intelectual fosse antagônica ao exercício da vida pública com garra; como se as mazelas do país fossem resultado da falta de vontade e de empatia. É um embuste.
Bertrand Russel, em seu magistral tomo sobre a história da filosofia ocidental, pontifica que a civilização grega atingiu os píncaros da glória que até hoje nos fascina justamente por ter sido a época em que se somou a paixão ao conhecimento, o senso de justiça à curiosidade intelectual e à produção artística. Por isso de lá saíram tanto Sófocles quanto Arquimedes ou -casos ainda mais incríveis- gente como Platão e Aristóteles, cujos intelectos versavam tanto sobre a justiça da pólis como sobre a metafísica e a astronomia.
O recurso à paixão desprovida da técnica é perigoso. Primeiro, porque é preciso o saber para resolver os problemas do país, complexos e resistentes à melhor das vontades. Segundo, porque, quando se fizer claro que somente os bons sentimentos, o voluntarismo e a disposição para o trabalho não são suficientes para trazer o nirvana ao Planalto Central, qual será a conclamação dos mandatários? Quando um governo técnico não dá certo, pode-se decompor análises e tentar identificar onde foi feito o erro de raciocínio; quando uma iniciativa movida a paixão dá errado, só se pode imaginar que faltou coração, faltou vontade. No limite, essa cosmovisão abre espaço para a exigência de mais e mais emoção, mais e mais sacrifícios, "ad infinitum". Como diriam nossos narradores futebolísticos, haaaaja coração! Quando os critérios de excelência dependem de algo subjetivo como "paixão" e "comprometimento", abre-se uma vala para o maniqueísmo persecutório, uma polícia das almas que condena os discordantes por crime de lesa-pátria.
Espero, claro, que este governo que agora se inicia resolva todos os problemas e navegue num mar calmo. Mas, caso venham as tempestades e as esperanças sejam frustradas, conviria estabelecer de antemão um anteparo de racionalismo para suavizar a dor da queda da paixão. Como já sabiam os gregos, afinal só a união de coração e cérebro é capaz de produzir a apoteose que o povo brasileiro anseia e merece.

GUSTAVO IOSCHPE, 25, faz mestrado em desenvolvimento econômico em Yale (EUA); e-mail:desembucha@uol.com.br


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