São Paulo, quinta-feira, 30 de maio de 2002
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coluna social

Ex-líder de quadrilha vira líder de ONG

O cearense Hermes de Souza já foi um bandidão de meter medo em muito marmanjo, deu a volta por cima e hoje é um ongueiro dos bons. Seu vasto currículo: circulou por nove cadeias e, entre uma fuga e outra, ficou preso por dez anos. Foi viciado em craque, líder de quadrilha e chefão do tráfico de drogas. Transformou-se em bom moço da noite para o dia. Teve uma luz e virou escultor autodidata. Cria lindas peças de madeira entalhada -uma delas exposta na Galeria de Arte Moderna de Dublin (Irlanda)- e é coordenador operacional e educador do projeto social NUA (Nova União da Arte), que ajudou a criar.

Folha - Quando você começou a esculpir?
Hermes de Souza - É uma história interessante. Depois de sete anos de prisão e de ter passado por poucas e boas -eu era estrategista de fugas-, fui transferido para Parelheiros, o pior presídio do sistema. Um dia, teve uma varredura na cela, e eu guardava umas madeiras que usava para ferver maria-louca, cachaça feita com casca de batata. Jogaram as madeiras para fora, e fiquei pensando que não tinha sido educado para aquilo. Comecei a meditar e olhar para a madeira e, de repente, vi a forma da cabeça de um cavalo. Pesquei a madeira, peguei um cortador de unha e esculpi uma cabeça de cavalo. Foi um dom que Deus me deu de presente.

Folha - Os outros presos também faziam esculturas?
Souza - Não. Tive vontade de ensinar, mas eu não tinha credibilidade nenhuma com a diretoria. Comecei a entalhar nas vigas que tirava do telhado e pedi para mostrar os trabalhos para o diretor. "Sou um cupim gigante", disse para ele, e mostrei o teto com uma viga arrancada e outra não e contei que tinha mais seis alunos esculpindo. Rapidinho, ele autorizou montar uma oficina de arte. Pedi redução de pena por esse trabalho. A cada três dias de trabalho, é reduzido um dia.

Folha - Como se envolveu com o crime?
Souza - Vim para São Paulo com 16 anos, atrás de trabalho. Comecei como garçom e, tempos depois, comecei a permear caminhos escuros. Fui trabalhar em cassinos clandestinos e passei a usar drogas. Dois anos depois, voltei para o Ceará e casei. Foi na época do Plano Collor, meu pai tinha vendido um sítio, e o dinheiro ficou bloqueado. Aquilo foi um bom motivo de revolta: meu pai trabalhou 80 anos como agricultor, e os caras bloquearam todo o dinheiro dele! Ingressei de vez no crime. Comecei a traficar, fiquei viciado em craque e passei a assaltar para manter o meu vício. Em 90 fui preso pela primeira vez por furto. O sistema não educa, gradua no crime. Entrei por furto e saí líder de quadrilha.

Folha - Quando você foi solto?
Souza - Quando fui transferido para Franco da Rocha o diretor falou para eu arranjar um emprego para ser solto. Não tinha estrutura para arranjar emprego e ia voltar para o crime, aí achei duas madeiras e falei: "Pronto, está aqui meu cartão de visitas". Mostrei os entalhes para o diretor e pedi um espaço. Saí arrebanhando outros presos, e fizemos uma exposição na PUC. Ganhei a minha liberdade e comecei a vender escultura na rua.

Folha - Como você saiu das drogas?
Souza - Eu me converti e conheci Jesus. A escultura foi um caminho para suprir a droga.

Folha -Como surgiu o projeto social Nova União da Arte?
Souza - Ao sair do presídio, conheci um psicólogo recém-formado que passou a me acompanhar. Mostrei para ele esse lugar, e começamos a montar a oficina Nova União da Arte. Temos oficinas lúdicas para as crianças, cooperativa de costureiras, aulas de teatro, dança, capoeira, marchetaria e artesanato com sucata. Foi muito difícil montar a primeira turma, ninguém acreditava. Hoje faltam vagas.

Folha - Por que vocês escolheram essa comunidade para montar o projeto?
Souza - Aqui era uma favela e hoje é uma comunidade do bairro de São Miguel Paulista. Tem água encanada e luz elétrica, mas não tem esgoto. Não tem ônibus de linha, as pessoas dependem de lotação não-regulamentada. Onde hoje funciona o projeto era um grande lixão. Vi cenas horríveis, como mãe dando comida do lixo para o filho.

Folha - Como foi o trabalho que vocês fizeram para um artista plástico irlandês?
Souza - Brian Maguire veio participar de um evento no Memorial da América Latina, conheceu a gente e nos convidou para fazer uns anéis de madeira para servir de suporte de ovos de avestruz pintados. Esse trabalho está na Galeria de Arte Moderna, em Dublin.

Folha - Vocês vendem as peças?
Souza - Estamos começando a vender, pois esperamos ter qualidade para isso. Não queremos que as pessoas comprem para ajudar. Queremos fazer arte.


Contato: tel. 0/xx/11/9409-0355


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