São Paulo, quinta-feira, 30 de maio de 2002
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outras idéias

mario sergio cortella

Vergonhas amargas


Construímos e fizemos esta cidade, nós também edificamos este lugar, nós também pusemos nossa vida na obra coletiva, mas, ainda assim, somos envergonhados


No início da década de 1990, na cidade de São Paulo, aconteceu uma plenária, promovida pelo governo municipal, para a discussão do Orçamento Participativo relativo ao setor central da metrópole; o convite para a participação foi feito aos moradores da área da Sé (na sua maioria habitada, naquela época, por encortiçados ou sem-teto). O espaço público no qual esse encontro ocorreu foi o Teatro Municipal da capital paulista, um dos mais bonitos do mundo, com obras de arte maravilhosas, projetado pelo grande arquiteto Ramos de Azevedo.
Imagine-se a cena: o povo pobre, muitos economicamente miseráveis, entrando no teatro devagar, olhando tudo à sua volta: escadas de mármore, paredes e poltronas de veludo e lustres de cristal. Lotou a platéia. Um ou outro colocou jornal ou sacola no assento, mas a maioria não sentava. Foi-lhes perguntado o porquê da atitude de ficarem de pé, e um participante, com mais coragem, respondeu: "Não sentamos para não sujar a cadeira". Foi dito, então, aos que participavam da reunião: "Sentem-se; este teatro é de vocês!". Eles riram muito, gargalharam até e cutucavam uns aos outros, simulando mesuras recíprocas de oferecimento dos assentos e pensando ser brincadeira, o que criou um certo encabulamento nos organizadores. Foi dito novamente lá do palco: "O teatro é de vocês, cidadãos e cidadãs, que pagam seus impostos e constroem esta cidade!". Eles riam ainda mais; um riso agora nervoso, robustamente descrente.
A razão para esse riso dolorido e incrédulo pode ser encontrada em outra história real e também exemplar. Dois anos antes, no final de 1989, Paulo Freire, na época secretário municipal de Educação de São Paulo, organizou um congresso de alfabetizandos. Era preciso fazer um cartaz para a divulgação e, num dia, andando pela periferia (visitando diversas salas do movimento de alfabetização por ele criado), Freire viu em uma delas, anotada na lousa, a primeira frase que um alfabetizando, de 45 anos de idade, conseguiu escrever na vida. Essa frase, registrada naquele momento ainda com equívocos de grafia e sintaxe, mas, gritantemente ética e desafiadora, foi usada como lema no cartaz do congresso: "Nós construímos esta cidade e nela somos envergonhados".
Vergonha! A frase ecoa: nós ("eles") também construímos e fizemos esta cidade, nós também edificamos este lugar, nós também pusemos nossa vida na obra coletiva, mas, ainda assim, somos envergonhados. Envergonhados por habitações paupérrimas, por corpos famintos e adoentados, por privação do lazer criativo, por desempregos socialmente evitáveis, por inseguranças agudas, por humilhações cotidianas, corriqueiras e aparentemente infindáveis.
Não é possível admitir a persistência desse envergonhamento; não é aceitável assimilar depauperações da dignidade coletiva; não é moralmente justificável a omissão e a lerdeza de uma sociedade no enfrentamento de tudo aquilo que humilha, ofende e degrada a integridade do outro na partilha da vida e na convivência humana.
Por isso o amoroso pernambucano e universal educador Paulo Freire tem uma reflexão que auxilia muito na compreensão e na tarefa do nosso tempo e que precisa ser repetida não até que as pessoas se cansem, mas até que se convençam: "A melhor maneira que a gente tem de fazer possível amanhã alguma coisa que não é possível de ser feita hoje é fazer hoje aquilo que hoje pode ser feito. Mas, se eu não fizer hoje o que hoje pode ser feito e tentar fazer hoje o que hoje não pode ser feito, dificilmente eu farei amanhã o que hoje também não pude fazer".
Sábia advertência, poderoso desejo!


MARIO SERGIO CORTELLA, filósofo, professor da PUC-SP, autor de "A Escola e o Conhecimento: Fundamentos Epistemológicos e Políticos" (ed. Cortez/IPF), entre outros, escreve aqui uma vez por mês


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