|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OUTRAS IDÉIAS
Anna Veronica Mautner
O caráter revolucionário das rotinas
Será que se livrar das rotinas é se libertar?
Não consigo pensar
em efetuar intervenções ou mudanças na vida sem
hábitos bem estabelecidos. No
nosso cotidiano, vejo a rotina
como um ponto de apoio indispensável. Vejo essas ordenações como Arquimedes via o
ponto de apoio e a alavanca
com a qual pretendia mover o
mundo. Eu diria: "Dê-me uma
rotina e uma vontade de mudar
para mudar o mundo".
Sem rotina, invenção é difícil.
Sem rotina, não existiria nem
jeitinho -coisa tão nossa, com
a qual abrimos novos caminhos. Sem rotina, com tudo
permitido, na ausência de ordenação, como e com que romper? Não tenho em mente a rotina das máquinas, que se repetem sem saber por quê. Falo daquela ordem que resulta de
múltiplos acertos e erros.
É sempre melhor lavar o rosto só depois de lavar os dentes,
tudo para não sujar com a pasta
o rosto já lavado. Sabia? Mínimos detalhes do cotidiano não
estão aí à toa. Têm uma razão
de ser. Procure-a.
Ter lugar para as coisas pode
chegar a ser uma obsessão, mas
pode ser também o melhor jeito de não ter que procurá-las a
cada vez que precisamos delas,
perdendo preciosos minutos.
Ordem e rotina sagradas e intocáveis paralisam as mudanças.
Mas, entre rotina sagrada e vida
sem qualquer rotina, vai uma
boa distância. Felizmente.
Uma boa mãe atende aos resmungos de seu bebê. A partir da
certeza de ser atendido, ele vivencia suas primeiras rotinas:
sabe que quando reclama provavelmente será atendido. Pouco a pouco, vai usufruir dessa
constância repetitiva e perceber algumas coisas como familiares e outras como estranhas.
Conforme as estranhas se repetem, vão sendo incorporadas ao
universo conhecido. Se o bebê
viver imerso num mundo com
falta de previsibilidade, olhará
o mundo apreensivamente.
Tem gente que passa a vida
só evitando surpresas. Os carcereiros vigilantes também são
prisioneiros de quem cuidam e
não querem saber de surpresas.
A rotina é, pois, não só o sustentáculo da liberdade mas também o aprisionamento dela.
Incapazes de usar a rotina,
perdemos a segurança necessária para criar e ser livre. É porque certas certezas existem que
eu posso usar a minha mente
para brincar, inventar, criar
coisas novas. As rotinas geram
confiabilidade no mundo que
nos rodeia e permitem libertar
nossa atenção para divagar por
terras novas.
Uma barra rígida sem ponto
de apoio não é alavanca, diria
Arquimedes. É conhecendo os
fenômenos do mundo que posso mudá-lo. É com a confluência dos dois que gero a força
para mover o mundo.
Educar para a rotina, ao contrário do que se possa crer, é
uma forma de gerar liberdade.
Imponha-se rotina para que as
crianças possam se exercitar
em contorná-la.
Não faz muito tempo, eu vivia tentando afrouxar rotinas
na minha vida, na de meus alunos ou clientes. Faltava flexibilidade para resolver inovadoramente novos problemas. De
uns anos para cá, percebo-me
lutando na direção oposta:
quero salvar a idéia de repetição que foi relegada ao escárnio geral. Tendo a rotina virado palavrão, perderam-se muitos graus de liberdade. Reimplantar a noção de rotina como
ponto de apoio indispensável
pode ser visto hoje até como
um ato revolucionário.
ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed.
Ágora)
amautner@uol.com.br
Texto Anterior: O que muda com a nova diretriz Próximo Texto: Frase Índice
|