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Faça você mesmo
Pedro Azevedo/Folha Imagem
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A professora de geografia Maria Lidia Fernandes Bueno, 42, que ensina as tarefas de casa ao seu filho Liam, 10 |
Com o dever de encarregar-se dos afazeres da casa, homens e mulheres encontram novas razões e prazeres para cuidar do espaço doméstico
MARCOS DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL
"A casa de um homem é seu castelo", diz o provérbio. Outro reforça: "Boa romaria faz quem
em casa fica em paz". Ainda temos: "Antes de iniciar o trabalho de andar o mundo, dá
três voltas na sua casa". Bons conselhos para ficar em casa (e zelar bem por ela) não faltam, mas a
batalha diária pela sobrevivência acaba desviando a atenção de uma boa fonte de bem-estar ali
guardada: os afazeres domésticos.
Tarefas prosaicas como lavar a louça, varrer o chão, passar a roupa, arrumar armários e gavetas,
cozinhar, decorar e dispor os móveis na casa podem promover uma "faxina" mental e elevar a auto-estima, segundo psicólogos, psicanalistas e aqueles que não têm medo do balde e do esfregão.
Mais do que isso: aprender desde cedo os meandros
da manutenção da ordem doméstica ajuda a desenvolver noções de responsabilidade e fortalecer a autoconfiança das crianças. E, com a correria do dia-a-dia, é cada vez mais evidente a necessidade de dividir
as tarefas, para que não fique tudo nas costas de
quem, historicamente, sempre respondeu pelas tarefas de casa: as mulheres.
Ao mesmo tempo em que manter uma empregada
em casa todos os dias está mais difícil, quem antes se ocupava de cuidar do lar
-a mulher- está agora na rua, ocupando seu lugar
no competitivo mercado de trabalho. Para quem sobra o serviço, então? Para todos.
Sinal desse novo filão, ou dessa redescoberta do lar
e das tarefas domésticas, pode ser encontrado num
lançamento editorial recente. Sem cair no tradicional manual de prendas domésticas e longe de ser antifeminista, a jornalista Chris Campos escreveu "Casa da Chris", com dicas práticas sobre como transformar afazeres do lar numa atividade até divertida,
desempenhada por qualquer um, sem papéis relacionados ao sexo ou à idade ou à função na família.
Realizar as tarefas da casa entendido como sinônimo de cuidar do espaço íntimo.
Mais curioso é que o livro foi lançado pela editora
Record, a mesma da clássica série cuja primeira edição remonta aos anos 70 -"Sebastiana Quebra Galho", espécie de bíblia da dona-de-casa escrita por
Nenzinha Machado Salles (1921-2000), na 36a edição.
"A idéia é resgatar esse lado lúdico. Por que na hora que a pessoa tem sua casa e pode fazer o quiser lá
dentro vai chamar um decorador?", diz a autora.
"Se pudesse, eu não saía do meu canto para nada",
afirma a estilista Andrea Garcia Martinez, 26, que vai
todo sábado de manhã comprar flores. "Chegar em
casa e sentir um cheiro gostoso, que te conforta, é
um investimento em qualidade de vida", afirma Andrea, que ainda tem o cuidado de perfumar a cama
com água de lavanda. Mas, além dos mimos, na hora
de fazer uma arrumação pesada, ela veste luvas e vai
à luta: "Nessas horas, o mais importante é escutar
uma música legal. Não encaro como trabalho, mas
como uma terapia. Me relaxa", diz.
Trabalho para todos
"Brincar de casinha de
verdade", como diz Chris Campos, não é só um passatempo para "meninas". No ano passado, foi fundada na província de Lucca, na Itália, a Associação
dos Homens Donos-de-Casa (Associazione Degli
Uomini Casalinghi), que já conta com mais de 4.000
integrantes. No site da associação (www.uominicasalinghi.it), há vários manifestos pelo direito do
homem de ser um dono-de-casa e até notas sobre
eletrodomésticos e produtos de limpeza.
"A casa se dá muito bem comigo. Brigamos raramente. Possuo o que se pode chamar de o dom da
"estocástica", ou seja, a capacidade de vislumbrar a
melhor maneira de guardar as coisas", afirma o escritor Juva Batella, 33, que escreveu o livro "Confissões de um Pai Doméstico (editora Planeta), em que
revela sua experiência como "comandante-em-chefe e líder supremo do território doméstico". "Gosto
bastante de arrumar uma cozinha, por exemplo, lavar a louça e alocar móveis. Gosto mais ainda de arrumar uma biblioteca", afirma Batella.
A subvalorização do trabalho doméstico, com resultado que se sente, mas quase não se vê, e a determinação dos "responsáveis" têm uma relação estreita com a história das sociedades. Desde o uso da
mão-de-obra escrava até a arquitetura influenciaram nesse caminho.
A separação de funções domésticas por cômodos
do jeito que estamos habituados hoje ainda seguem
modelos habitacionais da burguesia européia do século 19. Segundo o arquiteto Marcelo Tramontano,
do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da
USP de São Carlos, que também é um dos fundadores do grupo Nomads (Núcleo de Estudos sobre Habitação e Modos de Vida), nas últimas décadas, houve uma diminuição das áreas internas das moradias
e um paradoxal aumento do tempo passado em casa
e do número de atividades desenvolvidas nesse espaço. "Há uma justaposição de ações nos cômodos. É
comum crianças receberem seus amigos para brincar no quarto. Há 30 anos, isso não acontecia, as
áreas íntimas eram íntimas mesmo", afirma.
De acordo com o arquiteto, a cozinha, que hoje
também é usada como um espaço de convivência, ficava "escondida" dos olhos dos visitantes. "A disposição dos cômodos era feita de forma que as pessoas
que moravam na casa não se encontrassem com os
empregados", afirma o arquiteto. "Há alguns modelos de prédios novos que estão retirando algumas
funções de dentro dos apartamentos e criando mais
espaços coletivos", afirma.
Sócia de um escritório de arquitetura, a empresária
Maria Isabel Pastor Idalgo, 56, mudou-se recentemente para um prédio que oferece esses espaços coletivos, além de vários serviços. "Quis simplificar a
minha vida", conta Maria Isabel, que costuma chamar os amigos para comer em casa, mas, no local do
apartamento, usa o refeitório e a cozinha coletivos,
chamados "espaço gourmet".
Todos os dias, um empregado contratado pelo
condomínio deixa seu apartamento limpo. "Odeio
arrumar a cama. Minha mãe sempre gostou de arrumar para gente, ela se sentia mais mãe. Eu me acostumei que alguém fizesse isso por mim", diz ela, que
também não se encarregou da sua decoração -contratou um profissional para montar o apartamento.
Educação começa em casa
Segundo a psicanalista Alice Bittencourt, da Sociedade Brasileira de
Psicanálise do Rio de Janeiro, faz toda a diferença incluir ou não as crianças nos cuidados com o espaço
que a família divide. Elas podem começar por aprender a lavar suas roupas íntimas, fazer algumas coisas
na cozinha, arrumar a cama e cuidar do próprio
quarto desde cedo. "A partir dessas atividades é que
elas se tornam auto-suficientes, vão ficar menos inseguras", afirma a psicanalista, que acredita que realizar algumas tarefas de casa acabam até influenciando o rendimento escolar.
"As mães estragam muito os filhos, principalmente os filhos homens. É uma tentativa de poupá-los de
tarefas que uma hora ou outra terão de enfrentar",
diz a professora de geografia Maria Lidia Bueno Fernandes, 42. E ela pode falar.
Com dez anos de idade, seu filho Liam a acompanha ao supermercado, ajuda a retirar as compras do
carro e organizá-las nos armários, dá uma mão no
preparo do jantar, cortando legumes ou ralando o
queijo, põe e tira os pratos da mesa e ainda divide a
pia na hora de lavar a louça. Para a mãe, que viveu
nove anos na Alemanha, esse tipo de atitude não
causa espanto. "Lá não tem essa da mulher fazer tudo em casa. As tarefas são divididas igualmente, e as
crianças começam a participar logo cedo", afirma
Maria, que conheceu o pai de Liam, o designer gráfico William Russ, 56, em Munique.
Há certas horas que Liam preferiria jogar videogame e assistir à televisão a ter de colocar a mesa. "Eu
explico para ele que nem sempre podemos fazer
aquilo que queremos. A responsabilidade é de todos."
Além dos deveres
Arrumar e limpar a casa é tarefa inescapável: alguém terá sempre de fazê-la. Mas
a faxina doméstica, além de ensinar sobre responsabilidade e autonomia, tem ligações com a faxina interior, segundo especialistas. Para a psicanalista Alice Bittencourt, "uma casa muito desordenada reflete
uma desorganização mental". Segundo ela, a falta de
cuidado com a casa pode revelar um desleixo com o
rumo da própria vida. "Muitas vezes, a pessoa não
tem ânimo de fazer as coisas em casa porque mora
sozinha. Ela pensa assim: não vou cozinhar só para
mim, não vou por colcha na minha cama. A motivação sempre é o outro. É preciso aprender a fazer as
coisas para a gente. Só podemos amar o outro se nos
amarmos primeiro", diz.
O caminho inverso também é válido. Quando uma
pessoa bastante desorganizada mentalmente, desligada, começa a se organizar internamente, ela também leva essa organização para fora de si, para os
compromissos, para a casa.
Editor e consultor de um boletim eletrônico chamado "Simplify your Life" (www.simplify.de) -
com sugestões para deixar a vida menos complicada-, o alemão Werner Tiki Küestenmacher acabou
reunindo todas as suas dicas em um homônimo
("Simplifique sua Vida", lançado no Brasil pela editora Fundamento). "Nossa casa é um símbolo do
nosso interior", afirma o consultor. Para ele, por
exemplo, acumular de forma exagerada é como andar para trás: "Coisas velhas mantêm você no passado", diz.
A psicanalista Alice Bittencourt faz coro: "É muito
importante ter coragem de jogar coisas fora. É como
uma limpeza na cabeça, mas acontece nas gavetas.
Não se pode ter tanto apego ao que não serve mais".
"Mi casa, su casa"
Algumas pessoas, porém, têm
menos habilidades para organização do que outras.
Para elas, cuidar da casa e as tarefas que isso envolve
é um martírio. Mas tudo bem. A receita deve ser adequada a cada um. É o que defende Armando Colognese Junior, supervisor do curso de formação em
psicanálise do Sedes Sapientiae, de São Paulo. "Diante de tantos problemas que já temos fora de casa, a
arrumação não pode se tornar mais um fator de ansiedade e estresse. O que é um prazer para uma pode
ser detestável para outra. Então a pessoa não pode se
forçar, tem de aceitar o seu limite."
Para o pesquisador Hartmut Günther, responsável
pelo Laboratório de Psicologia Ambiental da Universidade de Brasília, o mais importante é a pessoa se
sentir confortável em casa. "O que significa arrumado para um pode não ser o mesmo para outro. É no
lar que temos nossa privacidade, onde não precisamos usar máscaras", afirma.
Se a pessoa sente que não tem influência como cidadão, não tem voz ativa na sociedade, não vai fazer
nada para ajudar a criar um ambiente público melhor. E isso se repete no espaço doméstico, diz o psicólogo. Se ela tiver o seu espaço respeitado dentro de
casa, há um engajamento maior na sua manutenção.
Uma alternativa para os desorganizados por excelência pode ser aprender com alguém especializado
no assunto. Dona-de-casa por "vocação", como faz
questão de frisar, a mineira Célia Nunes, 47, abriu
neste ano o curso "Simplesmente no Lugar" com a
irmã Vânia Laporte, 46, depois de trabalharem durante anos como arrumadeiras profissionais. O curso é dividido em dois módulos: "Organização de Armário de Quarto" e "Banheiro, Cozinha, Dispensa e
Lavanderia". "O mais importante é trabalhar em
equipe para que todos possam ter o seu momento de
lazer e descanso", afirma Vânia.
"Eu gosto muito de ficar em casa. Me sinto saudável numa casa bem arrumadinha e limpa." Tal frase
soaria como um chavão se não estivesse na boca do
pedreiro e catador de papel José Carlos Vieira Rocha,
57, que vive num barraco no aterro sanitário desativado de Carapicuíba, na Grande São Paulo.
O barraco de Zeca, como é conhecido, destaca-se
dos demais da região pelo desvelo. Em cada detalhe
da habitação se vê o esmero do pedreiro, que construiu, mobiliou e decorou todo o seu barraco com
material desprezado por outros. Há telhas feitas com
garrafa PET, papel de parede de embalagem de biscoitos, cortinas arranjadas com restos de papel laminado, um "jardim de inverno" com flores de plástico
e até um sistema de som que permite ouvir o rádio
em todos os "cômodos" da casa.
Um esquema de segurança feito com pedaços de
espelhos ainda permite que Zeca veja a rua deitado
em seu colchão. "A casa de um homem é seu último
refúgio", diz sorrindo.
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