São Paulo, quinta-feira, 30 de setembro de 2004
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A mão da limpeza

A mão-de-obra que se encarregou de cuidar da casa dos outros sempre teve uma história ligada à subvalorização do trabalho -e, por consequência, da profissão.
Segundo a historiadora e coordenadora-geral do Arquivo Nacional Mary del Priore, no Brasil colonial, o trabalho doméstico conviveu com a escravidão mesmo entre pessoas pobres, que, apesar das dificuldades, possuíam escravos. "Tudo se fazia em casa: de sabão a travesseiro, de roupas diárias a roupa de cama."
De acordo com o historiador Paulo César Garcez Martins, professor do Museu Paulista da USP, a proibição do tráfico de escravos, em 1850, acarretou uma crise que repercutiu dentro de casa. "Progressivamente mais caros, os escravos domésticos se transformaram em artigo de luxo. Isso fez com que a mão-de-obra livre se instalasse, formada por uma população pobre", diz.
Nos Estados Unidos, a profissão também teve sua origem ligada às populações desprivilegiadas. Segundo a historiadora norte-americana Alana Erickson Coble, Ph.D em história americana pela Universidade Columbia, a grande mudança veio no final do século 20, quando a redução da oferta deste tipo de trabalho acabou aumentando seu preço -e, portanto, seu valor. "Agora todos têm voz na negociação", diz.
Em sua tese "Dirty Linen: Change in Twentieth Century American Domestic Service" (roupa suja: mudança do serviço doméstico americano no século 20), inspirada por sua bisavó -imigrante sueca, que, aos chegar aos EUA, trabalhou como doméstica-, Alana afirma que, por outro lado, "ainda há muitos trabalhadores ilegais -sul-americanos e caribenhos em grande parte- que continuam sendo mais vulneráveis à exploração".
No Brasil, a coisa não avançou muito. "Os trabalhadores domésticos foram um dos últimos a serem protegidos pelas leis trabalhistas", afirma o historiador Garcez Martins. "Ainda é um trabalho muito explorado, marcado pela exclusão, com jornadas que podem ir das seis da manhã até as onze da noite."
Descendente de escravos, a baiana Joanice Santos, 35, hoje é secretária-geral e presidente em exercício da Federação Nacional do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos e testemunha a desvalorização. Ela afirma que ainda estão lutando pelo FGTS fixo, ainda opcional por lei. "Estamos numa senzala moderna", diz Joanice, que trabalha como doméstica desde os nove anos.
Depois de morar por muitos anos em "dependências de empregada", Joanice comprou um terreno e construiu sua própria casa. "Agora, quando chega sábado, vou limpá-la com carinho. É o meu retiro espiritual", diz.


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