São Paulo, quinta-feira, 30 de setembro de 2004
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outras idéias

anna veronica mautner

Sobre hotéis, mulheres e suas famílias

E is o hotel.
Eis a família.
Ei-las -as quatro mulheres da Casa Blindada renovando a tradição.
Vamos fazer uma maionese de tudo isso?
Mães, família e hotéis pedem estabilidade para existir. Os rituais do cotidiano têm de ser mantidos.
Um hotel deve assegurar ao seu hóspede de hoje que nada de quem se hospedou ontem seja encontrado ou percebido. Cada dia, cada hóspede é um começo. As mulheres cuidam com zelo do cotidiano. O charme da vida em hotel é a inexistência do ontem. É dos deveres essenciais da boa hospedagem fazer desaparecer todo e qualquer rastro do passado. A cada dia, um novo sabonete, novas toalhas; na geladeirinha, jamais uma garrafa usada. É no agora de hoje que a vida começa.


Família e hotel são muito diferentes, mas são duas instituições que exigem, cada uma de per se, o máximo de estabilidade nas suas rotinas. Se, no hotel, nosso objetivo é atingir o máximo da impessoalidade nos objetos e no espaço, na família, ocorre exatamente o contrário -só existem trocas afetivas, dia após dia, ao longo do tempo. E as mulheres vigiam


E a família?
Cada uma tem seu jeito, cada uma está sempre a nos lembrar de que somos o resultado de muitos "ontens". Somos todos fiéis resultantes de nosso cotidiano mantidos por elas -mulheres. Amanhã seremos o nosso hoje e ontem.
Família e hotel são muito diferentes, mas são duas instituições que exigem, cada uma de per se, o máximo de estabilidade nas suas rotinas. Se, no hotel, nosso objetivo é atingir o máximo da impessoalidade nos objetos e no espaço, na família, ocorre exatamente o contrário -só existem trocas afetivas, dia após dia, ao longo do tempo. E as mulheres vigiam.
Lord Hotel -um hotel velho numa rua velha. Até me lembro de quando foi inaugurado: em torno das décadas de 40 e 50.
Fechou.
Fechou ainda inteiro, as paredes intactas, balcão de recepção, poltronas, mesas de centro -tudo em ordem. Nos quartos, camas feitas, geladeiras, televisores nos seus lugares. Portas e fechaduras em ordem. O Lord Hotel fechou por decreto administrativo, não por qualquer insuficiência gritante. Foi um homicídio, não um suicídio lento.
A meu ver, poderia ter durado mais; não percebi nele decrepitude nem sinais de senilidade. Suas entranhas (fios e canos) não vi porque vísceras não se expõem. Parece que tudo continua pronto para receber o próximo hóspede, que não virá. Em vez deles, chegaram as artistas da Casa Blindada. São algumas artistas plásticas que vêm trabalhando juntas há alguns anos. A primeira obra delas como grupo foi a Casa Blindada, que era uma casa abandonada na qual cada uma das integrantes do grupo fez uma instalação acerca do tema da blindagem das famílias em relação ao perigoso mundo externo.
Fico pensando se elas se inspiraram consciente ou inconscientemente no esquema da Casa Cor, aí com vistas a se exporem estão os decoradores. Elas usaram a casa para comunicar não o belo, mas uma angústia -a angústia da necessidade de proteger-se e isolar-se do mundo.
O Lord Hotel é um espaço no qual elas criam uma metáfora diferente. A casa elas escolheram abandonada. O hotel lhes foi transferido intacto. Assumiram expressar-se não em um prédio, e sim numa instituição comercial -num hotel onde estão presentes todas as marcas institucionais, exceto os hóspedes.
Dá um susto a liberdade delas ao se apossarem de um morto ainda quente. Como se diz, não foi dado nem o tempo para o morto esfriar. Como será que um hotel perde sua alma? Eu não tenho idéia, mas garanto que a alma do Lord Hotel ainda não saiu do seu corpo.
Admiro a coragem que elas tiveram de espiar, tocar, enfeitar, fazer intervenções mínimas no espaço, sem desfigurá-lo. A Casa Blindada fez-se Casa Funerária.
Eros viceja em alguns quartos, a alegria, em outros, e a morte, em outros ainda. Slides de figuras transexuais projetadas sobre lençóis esperam os movimentos que visitantes podem fazer deitando-se sobre o lençol e interagindo com os travestis aí projetados. Histórias eróticas em quadrinhos são reproduzidas em lençóis alvos, esticados na cama, chorando a ausência do Eros dos hóspedes que se foram. Sempre a reprodução substituindo o real ausente. Sem desfiguração. A cama é cama, o lençol é lençol. O homem vivo falta.
Em seu lugar, as artistas colocaram a sua arte. A mais alguns metros, uma outra obra: um quarto inteiro pronto para ser habitado, como se fora a antevéspera do dia em que os hóspedes reais foram excluídos. No quarto ao lado, avesso desse, um espaço inteiramente vazio, sem móveis -deles só as marcas nas paredes e nos tapetes. Marcas do uso continuado, aquelas que aparecem quando tiramos quadros ou móveis do lugar.
Impecável jogo de realidade, representação, fantasia e evocação sobre o corpo morto do hotel que ainda retém fragmentos de sua alma. Um jogo terrível com a morte e com a vida que essas senhoras mães, senhoras esposas, senhoras avós nos propiciam. Será que isso tudo existe atrás da ação de cada mãe neste mundo?
Toda mãe, por suas palavras, usos e costumes, retransmite diariamente um mundo rico que vai constituir o cotidiano que nos embasa a todos, isto é, o que virá a ser, a partir da trama dessa sincronia de passado, futuro concomitante.
E eu, onde fico, observadora que sou tão-somente do momento presente? Não me lembro de ter visto tão claramente representada a transmissão da cultura nossa de todo dia por todas as mães nossas no todo dia delas. As senhoras da Casa Blindada, dando um outro passo, concretizaram a metáfora da transformação que atua, cada uma de per se, nas suas próprias casas em relação a seus filhos e netos. Uma imensa criação. Uma enorme sofisticação e uma grande cultura visual geram essa maionese bem crescida e bem pura que nos deleita. Só essas moças, senhoras jovens, avós, é que poderiam retratar a si próprias e fazer existir um novo momento no mundo de humanos. Tenaz sincronia da arte que não é do belo, é do vivo.
* Essa exposição está aberta como trabalho das quatro senhoras da Casa Blindada e muitos outros artistas, no antigo Lord Hotel, na rua das Palmeiras, em São Paulo.

ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora); e-mail: amautner@uol.com.br


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