São Paulo, quinta-feira, 31 de março de 2005
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Outras idéias

Michael Kepp

A arte da arquibancada e o coração comunitário

Saborear as escolas de samba do Rio de uma arquibancada do sambódromo significa se enfiar em um espaço similar ao de uma sardinha dentro da lata. No desfile das campeãs deste ano, as arquibancadas estavam tão acima da capacidade máxima que era quase impossível se virar. Sobreviver às nove horas de aperto exigiu jogo de cintura e criou uma convivência improvisada.
Esses dois talentos brasileiros permitiram aos que estavam no meu setor de arquibancada se ajustarem à falta de espaço, e não brigar por ele.


Sobreviver às nove horas de aperto no sambódromo exigiu jogo de cintura e criou uma convivência improvisada


Apesar de termos chegado cedo, eu e minha mulher tivemos de nos enfiar civilizadamente no pouco espaço restante da faixa amarela. Esse corredor amarelo de degraus é o caminho para os banheiros e os quiosques de comida e não deveria ser ocupado.
Para acomodar os que passavam, os ocupantes da faixa tinham de se espremer constantemente, num movimento de acordeão que rachava a parede humana, abrindo um estreito corredor. A maioria dos que passavam não entrou num jogo de empurra-empurra, ajudando a evitar o que poderia ter virado uma "arquibagunçada".
Sentados na faixa entre os desfiles, o jogo de cintura preparou a gente para os poucos incivilizados que preferiram escalar a parede humana.
Um "alpinista" subiu essa parede, colocando o pé de colo em colo e se equilibrando com a mão nas cabeças. Apesar de todos xingarem, ele não estava nem aí. E deixou a marca da sola do seu tênis na minha bermuda como lembrança.
Os laços formados durante essa convivência improvisada ajudaram a preencher o tempo ocioso _a espera pelo primeiro dos seis desfiles e os cinco intervalos de 30 a 45 minutos entre eles. Essas longas paradas encorajaram estranhos na arquibancada a interagir só para evitar cinco horas de tédio absoluto.
Depois que eu e minha mulher descobrimos que nós e uma capixaba ao nosso lado tínhamos amigos em comum, começamos um papo de noite inteira que acabou virando uma troca de confidências. Também conheci uma moradora da zona norte, filha de um dirigente da Beija-Flor, e seu namorado, que distribuíam bandeiras da escola, campeã deste ano. Eles lubrificaram nosso papo com cervejas tiradas de uma geladeira plástica que vazava para nossos assentos de concreto, deixando-nos com a bunda estupidamente gelada.
Alguns laços de arquibancada já vieram formados. Por exemplo, a rodinha de dois casais americanos que foram embora depois da segunda escola porque, para eles, conviver requer os confortos de um cruzeiro.
Outros laços lembravam aqueles formados em "raves". Um gringo, drogado e descamisado, e uma carioca desinibida se conheceram pelos afagos e beijos.
Outras tentativas de formar laços falharam, como a do coroa portenho que tentou paquerar minha mulher depois que aquelas cervejas me mandaram para o banheiro.
Essa interação na arquibancada foi mais democrática do que a que se encontra em jogos de futebol. No Maracanã, a classe média pode pagar por cadeiras de preço médio, ficando segregada das torcidas da classe trabalhadora, que ficam na arquibancada baratinha.
Mas o sambódromo oferece os preços exorbitantes dos camarotes e frisas ou as arquibancadas, bem mais baratas. Então, você fica com os muito ricos ou com o resto, uma mistura que só se encontra na praia de Copacabana na noite de Ano Novo.
Um amigo americano disse que minha história de sobrevivência no sambódromo foi uma lição de "gerenciamento de espaço", como morar em Nova York.
Mas não se pode comparar a adaptação à selva de pedra ao meu diminuto degrau de concreto. Adaptar-se à arquibancada é uma arte: requer não só uma cabeça fria e calculista, mas também um coração comunitário.

MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 22 anos no Brasil, é autor de "Sonhando com Sotaque -Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)
www.michaelkepp.com.br



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