São Paulo, quinta-feira, 31 de maio de 2001
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outras idéias

Feira & dignidade

Chegam-se a convocar agentes florestais para defender as árvores da rua -as mesmas acostumadas a receber dejetos dos cachorrinhos das distintas famílias

FÁBIO STEINBERG

Era uma vez uma feira em Moema, um pacato e liberal bairro da zona sul de São Paulo. Feirantes e fregueses lá viviam felizes há 36 anos. Por isso, não raro, tratavam-se pelos nomes. Já representavam, de ambos os lados, uma segunda e até terceira geração de relacionamentos. Assim, ex-criancinhas alimentadas com verduras e frutas fresquinhas das barracas agora faziam o mesmo com os seus rebentos. Para consolidar a sólida amizade e lealdade, era praxe trocar presentinhos entre os dois grupos no Natal e nas demais efemérides, fazendo desse encontro de classes um modelo a ser seguido pela cidade.
Eis que, um dia, uma liminar na Justiça obriga a feira a mover suas barraquinhas uma única quadra para a frente. E, da noite para o dia, os feirantes passam a ser os maiores inimigos daquela microcomunidade moradora da nova quadra.
Instala-se a hostilidade, em que não faltam cartazes nas sacadas dos apartamentos, os quais essencialmente se traduzem em "feirantes, fora daqui". Movem-se ações legais para o resgate da área que era ocupada uma manhã por semana. Surgem movimentos de boicote às compras enquanto persiste a situação. Chegam-se a convocar agentes florestais para defender as árvores da rua -as mesmas acostumadas a receber dejetos dos cachorrinhos das distintas famílias. Afinal, alegam os reclamantes, a vegetação da rua está sendo brutalmente agredida pelo comércio predatório dos feirantes. Mas, talvez, o momento mais crítico da guerra de rua seja aquele em que os moradores mais exaltados lançam ovos e creolina de suas janelas para as ruas, numa desleal tentativa de afugentar os feirantes do local.
Não se sabe como e se a história termina, mas esse não é o foco principal desta nossa conversa. O episódio serve para ilustrar uma questão bem mais crucial e que vem afetando os moradores das grandes cidades. Refiro-me à insensibilidade que tomou conta dos chamados privilegiados da sociedade brasileira. Estabeleceu-se, sob qualquer pretexto, uma grave intolerância em relação aos menos favorecidos, principalmente àqueles que prestam serviços.
Um bom exemplo é a instalação de "chiqueirinhos" nas entradas dos prédios, que são, ao mesmo tempo, humilhantes e vergonhosos. Entregadores de pizza, entre outros, não raro, debaixo de chuva e frio, submetem-se a fornecer o produto requisitado em domicílio entre grades, através de minúsculas aberturas, como se fossem suspeitos em potencial.
Infelizmente, o comportamento com os feirantes ou as jaulas nos portões dos prédios não são fatos isolados. Fazem parte de uma cultura que está se implantando com rapidez, ironicamente vista como "politicamente aceitável", mas, no mínimo, um péssimo exemplo para as novas gerações. Tais atitudes podem partir de desde profissionais liberais, como médicos que trabalham 24 horas por dia, advogados, que asseguram a justiça aos cidadãos, a industriais e comerciantes, que produzem e geram empregos. São certamente bons pagadores dos impostos e cumpridores de seus deveres cívicos. E mais: os argumentos que apresentam para garantir os seus direitos, seja a retirada das feiras nas portas de suas casas, seja o fim do pedágio em rodovias públicas, são sempre muito convincentes e provavelmente justos. O que se discute aqui é outro conceito: a difícil arte de saber conceder.
De nada adianta praticar filantropia programada ou participar de campanhas de ajuda aos carentes para aliviar almas culpadas. O exercício da tolerância com o próximo acontece nas pequenas coisas e no dia-a-dia.
No entanto, mais que dinheiro, falta doar sentimentos. E isso começa pelo respeito à dignidade e pela sua prática em relação aos que nos cercam, tratando as necessidades da maioria como se fossem as nossas.


FÁBIO STEINBERG, jornalista, é consultor em comunicação corporativa e autor do livro "Ficções Reais" (Editora Campus); e-mail: fabionet@uol.com.br



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