São Paulo, quinta-feira, 31 de julho de 2008
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OUTRAS IDÉIAS

ANNA VERONICA MAUTNER


Vamos falar em... como se diz mesmo?


[...] DIFICILMENTE UM ENTREVISTADO NO RÁDIO OU NA TV PROCURA PALAVRAS, MESMO PEGO DE SURPRESA; SERÁ QUE OS HOLOFOTES ATRAVESSAM O BLOQUEIO?

A incomunicabilidade seletiva está instaurada: "Não me lembro nem escuto". Não faz tanto tempo que só os velhos bem velhos gozavam do privilégio de só ouvir o que queriam.
"Ela não está surda, mas só ouve o que quer", diziam os parentes. Hoje, a escuta seletiva se difundiu. A freqüência com que isso ocorre nas relações funcionais (vendedores, atendentes, prestadores de serviços) e mesmo em papos informais nos leva a crer que está sendo construída uma barreira, uma blindagem virtual em torno de pelo menos um sentido.
No caso da escuta, poderíamos dizer que cada um de nós teve de se tornar um relógio de repetição. Praticamente toda comanda tem de ser repetida pelo menos uma vez. A atenção do ouvinte não se fixa durante uma frase inteira.
Acredito que não aconteça a mesma coisa quando a pessoa "se sente honrada" de estar onde está, fazendo o que faz. Esse caso fica muito evidente em bares e restaurantes, onde são freqüentes os enganos que ocorrem porque metade da frase foi ouvida -por exemplo, trazer água sem gás quando foi pedida água com gás.
A qualidade da relação da pessoa com sua função estaria tão deteriorada que tudo passou a funcionar como se ela já soubesse tudo o que pode acontecer. Entediados, nós nos desligamos, deduzindo o resto da frase. O motorista de táxi também exige repetição. Parece-nos que escutou, mas, daqui a alguns segundos, por uma pergunta, ele nos faz ver que não ouviu nadinha.
O mesmo tipo de bloqueio também funciona para a voz que vem de dentro de nós. É comum ouvir gente no corredor, em bate-papo com um colega, procurando nomes: "Como é mesmo que se chama?"; "Como se diz?" Mas é curioso observar a mesma pessoa, voltando ao trabalho, recuperar por milagre suas sinapses. Dificilmente um entrevistado no rádio ou na TV procura palavras, mesmo pego de surpresa. Será que os holofotes atravessam o bloqueio? Que fenômeno é esse?
Colocar a culpa no estresse da vida moderna está na moda.
Também são comuns os comentários sobre Alzheimer. Mas, se assim fosse, isso também ocorreria no trabalho, na conferência e na reunião profissional. Mas não. Idosos especialistas, em mesas-redondas na TV, respondendo a perguntas, não procuram as palavras. Parece que estão todas ao seu dispor. Terminada a gravação, os vazios de palavras voltam.
Não tenho resposta para a questão de como funciona essa barreira entre vivência do agora e sumiço de palavras.
Referente ao bloqueio da escuta da voz que vem de fora, suponho que aí entra o que eu chamaria de relação feliz com a vida. O contrário provocaria um bloqueio que pode gerar disfunção na comunicação. Será que, quando se está onde não se quer estar, se regateia a atenção? Como numa barganha, o acordo sempre sai pela metade ou por menos da metade.
A razão de tal blindagem não sei. Mas percebi que ocorre cada vez mais cedo e não é específica de nenhuma classe social.


ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

amautner@uol.com.br

Leia na próxima semana a coluna de Dulce Critelli


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