São Paulo, 2 de outubro de 1999

A VIDA
"Professor de nada" constrói
marco da cultura brasileira


FEDERICO MENGOZZI
especial para a Folha

Houve um tempo em que o lígure Pietro Maria Bardi era visto como uma espécie de “condottiere” sem escrúpulos da brigada cultural do jagunço paraibano Assis Chateaubriand. Depois, na altura do 80º aniversário, tudo mudou como por um passe de mágica e o professor P.M. Bardi passou a ser considerado um “Babbo Natale” tropical, o bom velhinho que conseguia agradar horácios e curiácios, à exceção do colecionador Gilberto Chateaubriand, com seu sorriso irônico.
João Wainer/Folha Imagem
Caixão com o corpo de Pietro Maria Bardi chega ao velório no Masp, no final da tarde do dia 1/10

O verdadeiro papel desse “professor de nada”, como insistia em dizer, pode estar entre esses extremos. Nem só vilão, nem apenas herói, Bardi _e Chateaubriand_ responde basicamente pela construção de um marco na geografia cultural brasileira, o Museu de Arte de São Paulo, fundado em 1947. Antes, havia as querelas de província e a Semana de Arte Moderna. Depois, a sintonia com o mundo, o Museu de Arte Moderna e as Bienais de São Paulo. O Masp foi o primeiro endereço de um Brasil moderno.
A história do museu paulistano prova que, às vezes, o fim pode mesmo justificar os meios. Para a constituição de um acervo que, se não é exemplar, foi o melhor que um país ascendente pôde constituir, valeu tudo.
Até mesmo a chantagem sistemática para que a burguesia paulista, tão endinheirada quanto destituída de sentido social, doasse quadros que Bardi conseguia mundo afora valendo-se dos bons preços do pós-guerra. À fundação pouco ortodoxa, dizia, cabiam as insinuações sobre a autenticidade do acervo.
O Masp foi a grande referência da vida de Bardi, mas não a única. Sua trajetória pode ser dividida em partes quase iguais e teve a arte como fio condutor. A primeira metade se vincula à Itália, país em que nasceu no dia 21 de fevereiro de 1900. Se isso lhe trazia a eterna dúvida de estar ligado ao último ano do século 19 ou ao primeiro do século 20, dava-lhe também uma facilidade: tinha sempre o número de anos do ano que corria.
Nasceu em La Spezia, no golfo de Gênova, filho de comerciantes, e não deixou que a infância pouco feliz corrompesse o resto de sua vida. Repetiu três vezes o terceiro ano primário e, em consequência, abriu caminho para o autodidatismo, até se transformar no mais completo e puro autodidata, segundo suas palavras, capaz de explorar a biblioteca do advogado para o qual trabalhava como “boy” aos 10 anos e publicar a primeira de meia centena de obras pouco memoráveis, um pequeno ensaio sobre o filósofo utilitarista inglês Jeremy Bentham, aos 17.
Foi operário, serviu como soldado na Primeira Guerra Mundial, desenhou e fez esculturas em barro, escreveu textos publicitários e jornalísticos, trabalhou no “Il Secolo”, “Corriere della Sera” e, mais tarde, em “L’Ambrosiano”, e nas revistas “Belvedere” e “Quadrante”, entre outros.
Iniciou-se no comércio de obras de arte com pouco mais de 20 anos _a partir daí nunca mais foi empregado de ninguém_ e abriu sua primeira galeria, em Milão, aos 27 _por esse tempo já estava casado e teve duas filhas.
Durante anos, sabia-se que Bardi conheceu Mussolini e estranhava-se um pouco o momento de sua chegada ao Brasil. No começo da década, com a publicação de “P.M. Bardi”, de Francisco Tentori, na Itália, e declarações de Bardi e sua segunda mulher, a arquiteta Lina Bo (1914-92), veio à tona o passado fascista. Bardi chegou a dirigir a galeria do sindicato fascista de belas-artes na capital italiana e polemizou sobre a estética da arquitetura fascista. Segundo Lina, assumiu o fascismo de cunho socialista e se incompatibilizou com o fascismo de tom hitlerista.
O aventureiro Bardi, como gostava de se definir, chegou ao país em 1946, o que marca o início da segunda metade de sua vida. Em 1934, ao realizar uma mostra de arquitetura em Buenos Aires, parara no Brasil e soubera coisas maravilhosas da terra. Uma década depois, proprietário do Studio d’Arte Palma, em Roma, veio com Lina e duas caixas repletas de obras para promover exposições de arte italiana no antigo prédio do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro. Encontrou-se com Chateaubriand por recomendação do embaixador brasileiro na Itália e o Masp começou a surgir.
Bardi queria o museu no Rio. Chateaubriand insistiu em São Paulo, onde estava o dinheiro. A cultura e o faro do misto de crítico e marchand trouxeram para o Brasil um acervo hoje impossível de ser reunido _dentro ou fora do país. As críticas vieram na razão direta dos métodos empregados por Chateaubriand para “motivar” as doações, e as suspeitas provinham das surpresas que chegavam a São Paulo.
Surpresas que atendiam pelo nome de Renoir, Van Gogh e Picasso, para ficar nos artistas mais modernos.
Mais tarde, apontaram lacunas no acervo e, por outro lado, alguns excessos, como as 13 obras de Renoir. As lacunas, pensava Bardi, seriam preenchidas justamente com a troca dos quadros que sobravam, comprados a preço de ocasião.
O museu nunca chegou a realizar esse projeto e o acervo permaneceu, a não ser a parte brasileira, estacionado nas compras efetuadas até os anos 50. Mas a coleção era somente o lastro de uma instituição que foi sobretudo um oásis cultural, um centro formador e informador, segundo o conceito museológico mais contemporâneo.
Nos 40 e tantos anos em que dirigiu o Masp, movimentos explodiram e passaram, nem sempre contando com a simpatia francamente figurativa do diretor-ditador. Bardi não apreciava aquilo que definia de borrões abstratos e também não chegou a ver com muita simpatia tendências mais dionisíacas como o happening e a performance.
O museu perdeu muito de seu ímpeto experimental para as Bienais e preservou-se como espaço nobre da cidade, aberto a exposições retrospectivas e eventos internacionais. Só aos 90 anos concordou em tratar de um sucessor, fiel ao lema que aprendeu com Pirandello, de quem foi amigo, que dizia “Trovare senza cercare” (encontrar sem procurar).
Na vida pessoal, negava a exuberância e a impulsividade das atitudes à frente do museu. Não fumava, não bebia, não jogava, dormia e acordava cedo, confessava ser um “gourmet” discreto, não ia ao teatro e, pasmem, nem mesmo a exposições de arte.
Em 1951, enclausurou-se com a mulher na Casa de Vidro, numa vasta área de Mata Atlântica do bairro do Morumbi. Para viver, não atacava os cofres do museu, mas se dedicava à galeria Mirante das Artes _diretor de museu e marchand, comentavam indignados os adversários. Entre suas excentricidades mais notórias estavam as idas à pé da casa à sede do Masp, quilômetros adiante, na avenida Paulista.
Nos últimos anos, Bardi ganhou as manchetes da mídia por fatos tão diversos quanto a inscrição obscena que mandou sobrepor à pichação dos políticos nas paredes do Masp ou o questionamento da autenticidade de um quadro que o museu considerava um auto-retrato de Rembrandt.
Porém, o que mais o entristeceu, e irritou, a ponto de, no momento de seu afastamento do Masp, recusar o cargo de presidente de honra, foi a polêmica que travou com seu sucessor, Fábio Magalhães, sobre os danos constatados em uma tela de Tiziano.
Lina morreu em março de 1992, Bardi continuou na Casa de Vidro, preparando um livro sobre a história do museu, história que foi motivo de um sem-número de crônicas pra a revista “IstoÉ”. Lembrava da ocasião em que arriscara, contra as evidências, ser de Velázquez o “Retrato do Conde-Duque de Olivares”, contava como encontrara os desenhos dos soldados que confirmava ser de Rafael, e não de Perugino, o óleo sobre madeira “A Ressurreição de Cristo”, recordava como se dera o desfile de moda para o qual Salvador Dalí criara um costume para a mulher do ano 2045... O Masp, sempre o Masp, passava diante de suas pobres retinas cansadas.

Federico Mengozzi, 49, é jornalista.

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.