São Paulo, 2 de outubro de 1999


BARDI EM CINCO MOMENTOS
Bardi, história do gênio por trás
do ‘brazilian way of life’

LEON CAKOFF
da Equipe de Articulistas

Bardi foi um dos grandes personagens da história contemporânea do Brasil. Tinha a idade do século e é injusto que não tenha podido comemorar a sua virada.

Reprodução
Lina e Pietro Maria Bardi
em 1982


Bardi foi a principal ferramenta de Chateaubriand para dar sentido ao seu domínio sobre o nosso “brazilian way of life”, à fartura do pós-guerra que serviu à gatunagem dos poderosos protegidos por chapas brancas. Sem o Bardi, o império de Chateaubriand não seria lembrado pelo Masp (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand), pois o resto (o império jornalístico Diários Associados) virou pó.
E, na euforia do pós-guerra, os capitães de nossa indústria incipiente, cujo passado também virou pó, tampouco entrariam na nossa história, não fossem as chantagens da dupla de criação Bardi-Chatô em extorqui-los, a fim de adquirir, a preços de banana, as coleções de quadros de nobres falidos na Europa. A arte do mecenato ganhava sofisticação.

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O Masp com a pichação "merda", protesto feito a mando de Bardi


Soube tirar bom proveito do caos da guerra. Como um personagem simpático de Rosselini. Um neo-realista sem retoques, sem a poeira dos bombardeios na roupa e no chapéu, mas refinado, culto, muito vivo e cheio de domínio. E, melhor ainda, acompanhado pelo gênio de Lina Bo, a arquiteta que não se deixou deslumbrar pelo decantado Brasil novo, que fez a consciência do astuto Bardi, aos poucos, mergulhar na nossa realidade miserável, muito distante da euforia que nos garantia então o status de país do futuro.
Conheceu com Lina o nordeste baiano, foi testemunha ocular e deu suporte, até financeiro, a um talento então emergente chamado Glauber Rocha. Criou a primeira oficina de cinema em São Paulo. Bardi e Lina deram voz à arte popular, levaram o artesanato aos museus, sem distinção entre o que Picasso ou Matisse faziam.

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Bardi e Assis Chateaubria


Bardi era um senhor absolutista. Amava e odiava aos que o cercavam. Tive o privilégio de trabalhar ao seu lado, no Masp, por longos dez anos. De 1974 a 1984.
Fui, durante todo esse tempo, o seu confidente. Bardi chamava-me todas as manhãs para a sua sala no Masp (“o professor está chamando”, dizia Dona Maria, a telefonista, pelo ramal interno), e lá ia eu aflito, porque ia ser mais uma manhã perdida em que ele não me deixaria trabalhar com os suas “egotrips”. Mas nada foi perdido.
Fazia planos e adorava falar na primeira pessoa (eu, eu, eu) sobre as suas bravatas e façanhas entre a Itália fascista e o Brasil.
Como Cristo, eram nebulosas certas passagens da sua vida. Mas não no trato das suas lembranças como colaborador artístico de Mussolini. Afinal, a Itália, com tantos monumentos e tesouros culturais em seu passado, precisava de conselheiros também sob o fascismo.
Desenvolvemos juntos o sonho de filmar a vida de Chatô e chegamos a consultar o Chacrinha para o papel, e ele aceitou.
Adoniran Barbosa e o Corinthians foram outros projetos que não deram certo, mas a influência de Lina guiava os seus pensamentos.
Nem tudo, porém, era harmonia entre os dois. O tempo parecia separá-los ideologicamente. A escada do Masp, do térreo ao primeiro andar, tinha, na cabeça da Lina, a função de um palanque político. Bardi odiava o conceito, mas tocava no assunto como sendo idéia de uma moleca, com carinho.
Bardi adorava reclamar dos outros e xingar de “merda” a mediocridade daqueles com quem devia tratar para inventar dinheiro para os seus projetos faraônicos e para o Masp. Até que um dia chegou ao seu museu, pouco antes das oito da manhã, e encontrou o muro pichado com propaganda política. Não teve dúvidas. Mandou um contínuo, de brocha na mão, escrever “merda” em cima do nome de todos os candidatos.
Conseguiu o que mais queria: virar notícia dizendo simplesmente a sua palavra preferida.
Os anos Bardi no Masp foram fundamentais. Aprendi com ele que uma pessoa, à medida que envelhece, só faz acentuar o que ela realmente tem de bom e de ruim no seu caráter.
Bardi ficava cada vez melhor e cada vez pior. Era um gênio em constante ebulição. Tinha momentos em que me adorava, logo substituídos por furores descontrolados.
Dava carta branca para o departamento de cinema (o meu departamento, o departamento do “eu sozinho”), mas ficava irado quando via na imprensa a repercussão da programação de cinema para os auditórios do Masp. Dizia que era injusto, que as suas exposições tinham menos repercussão, o que, claro, nunca era verdade.
Depois de quatro anos juntos _ era o começo de ano de 1977_, Bardi me chama para um pedido: “Inventa aí uma coisa para outubro, o aniversário dos 30 anos do Masp”. Inventei a Mostra Internacional de Cinema. “Não vai dar certo”, disse.
Já conhecia o Bardi o suficiente. O seu “não vai dar certo” era, mais que tudo, uma provocação para motivar os seus colaboradores. Tive que provar por sete anos seguidos que poderia dar certo. A Mostra do Masp cresceu tanto que, para a sua salvação, teve que deixar o Masp. Com a sua independência, a Mostra se salvou, mas perdeu para sempre o seu presidente de honra.


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