São Paulo, 2 de outubro de 1997

Chatô foi Robin Hood das artes

O jornalista e fundador do Museu de Arte de São Paulo, Assis Chateaubriand tentou ''reeducar a burguesia'', pressionando e até chantageando a elite de São Paulo para contribuir com seu museu por meio de doações


ANTONIO CARLOS DE FARIA
Secretário de Redação da Sucursal do Rio

A revista americana ''Time'', em 1957, fez reportagem sobre Assis Chateaubriand na qual descrevia o jornalista como um Robin Hood brasileiro: ''o homem que rouba Cézannes dos ricos para dar aos pobres''.
A reportagem, publicada a propósito de uma exposição de parte do acervo do Masp em Nova York, descrevia as chantagens utilizadas por Chateaubriand para tirar dinheiro da elite paulista e conseguir comprar quadros para o Museu de Arte de São Paulo.
O método era quase sempre o mesmo: ameaçar o candidato a doador com campanhas difamatórias, caso ele se negasse a fazer a contribuição desejada.
O jornalista, dono dos Diários e Emissoras Associados, se defendeu, escrevendo um artigo no qual negava as acusações.
Na época, sua rede de veículos de comunicação já tinha mais de cem jornais, duas dezenas de rádios e duas emissoras de TV.
Chateaubriand gostaria que suas ameaças aos milionários reticentes não ficassem conhecidas como chantagem.
Ele preferia chamá-las de ''reeducação da burguesia'', usando propositalmente o jargão dos comunistas para brincar com o efeito de terror que o mundo soviético impingia na era da Guerra Fria.
Quando a ''Time'' fez a reportagem, o Masp tinha uma década. Seu acervo já era visto como um dos mais importantes nas Américas. Chateaubriand tinha conseguido realizar um dos seus vários projetos, que a muitos de seus contemporâneos parecia ser uma loucura. O desejo de montar um grande museu foi manifestado por Chatô em 1946. Iniciando a construção de um novo prédio para abrigar os Diários Associados em São Paulo, localizado na rua 7 de Abril, ele reservou o primeiro andar para aquilo que imaginava como uma galeria do que houvesse de mais representativo das artes européia e brasileira.
Nesse mesmo ano, ele encontrou o italiano Pietro Maria Bardi, que viria a ser fundamental para auxiliá-lo a executar seus planos. Bardi estava no Rio, acompanhando uma exposição de 54 telas que tentava vender no Brasil. Eram quadros italianos, dos séculos 13 ao século 18. Chateaubriand, descreve Fernando Morais no livro ''Chatô, o Rei do Brasil'', conheceu Bardi durante a exposição. Imediatamente, fez o convite para que o italiano o ajudasse a montar o grande museu que planejava.
O convite foi feito no tom habitual do jornalista, o que quer dizer que soou como uma intimação para Bardi.
Bardi teve um dia para pensar na proposta, cuja aceitação significou para ele um compromisso que durou 44 anos e sobreviveu à morte de Chateaubriand, em abril de 1968.
A convocação foi extensiva à sua mulher, Lina Bo Bardi, a arquiteta que adaptaria o andar do prédio em construção para seus primeiros anos de museu e, depois, desenharia a sede definitiva do Masp, na avenida Paulista, concluída em 1969.
Hoje, com a memória debilitada, Bardi, 97, que se naturalizou brasileiro, diz que tudo que fez pelo Masp foi consequência daquele primeiro encontro com Chateaubriand.
''É tudo uma questão de dar e receber'', disse à Folha em entrevista publicada em fevereiro.
O plano que Chateaubriand expôs a Bardi tinha uma lógica que só é possível aos homens que enxergam o momento histórico. O dono dos Diários Associados tinha estado um ano antes na Europa.
Ele concluiu que poderia comprar muitas das obras de arte em poder das famílias tradicionais européias, que estavam sem dinheiro, se recompondo dos estragos causados pela Segunda Guerra (1939-1945).
Só precisava de um europeu culto que pudesse orientá-lo a comprar as coisas certas. P. M. Bardi, que tinha uma galeria em Roma, era esse homem. Quanto ao dinheiro para fazer as compras, Chateaubriand não tinha dúvidas de onde consegui-lo.
O dinheiro estava em São Paulo, terra dos ricos fazendeiros de café e dos industriais. Por esse motivo, o futuro museu também ficaria sediado em terras paulistanas.
Transcorreram poucos meses entre a conversa inicial e as primeiras compras. No período, Chateaubriand conseguiu levantar dinheiro equivalente, em valores de hoje, a pouco mais de US$ 1 milhão.
As primeiras vítimas do método de rapina foram o industrial Francisco ''Baby'' Pignatari, a fazendeira Sinhá Junqueira e Geremia Lunardelli, conhecido na época como o maior plantador de café do mundo.
Com esse dinheiro, começou o projeto que, 50 anos depois, reúne um acervo estimado em cerca de US$ 1,2 bilhão, de acordo com avaliação da casa de leilões Sotheby's.
Os primeiros quadros comprados com a assessoria de Bardi foram dois Tintoretto, um Botticelli, um Murillo, um Francesco Francia e um Magnasco, relata Fernando Morais.
Da mesma forma que apreciava constranger os potenciais doadores, Chateaubriand tinha prazer em deixar perplexos os vendedores das obras que comprava. Foi assim quando ele adquiriu um pequeno óleo feito por Winston Churchill, em junho de 1949, num leilão da Christie's, em Londres.
Depois de vencer o leilão, que também era disputado pelo ator americano Robert Montgomery, o jornalista foi convidado a ir até a casa de Churchill, que queria conhecer o comprador de seu quadro.
Chateaubriand, para espanto do embaixador brasileiro que o acompanhava, resolveu condecorar Churchill com a Ordem do Jagunço, que havia criado especialmente para que o primeiro homenageado fosse o primeiro-ministro britânico.
A cerimônia foi realizada no jardim da casa de Churchill, que pouco entendeu das palavras do jornalista brasileiro.
Com a distinção honorífica, Chateaubriand mostrava ostensivamente para todos que via o mundo como uma simples extensão da sua Paraíba.
Ele, que controlava o maior império das comunicações já construído no país, nunca deixou de ser um filho da cidade de Umbuzeiro.
O Masp, inaugurado em 1947, teve uma segunda inauguração em 5 de junho de 1950, quando foi todo concluído o prédio dos Diários Associados.
Nessa nova festa, Chateaubriand aproveitou para fazer um experimento radical.
A cerimônia foi transmitida por um circuito de TV, que só seria inaugurada oficialmente no Brasil quatro meses depois, quando o jornalista lançaria a emissora Tupi. Naquela época, a televisão só existia nos EUA, Inglaterra e França. Mas essa é outra história.

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