São Paulo, 2 de outubro de 1997

Homem certo na hora certa

Admirador de Mussolini, Pietro Maria Bardi, hoje com 97 anos, chegou ao Brasil após a Segunda Guerra Mundial e, apoiado por Assis Chateaubriand, montou o acervo que deu prestígio internacional ao Masp


FERNANDA CIRENZA
da Redação

Pietro Maria Bardi, o homem que tinha olhos para identificar um Rafael, quando muitos negavam sua autenticidade, está quase cego. Não consegue mais ler nem escrever, apesar de reconhecer amigos e as enfermeiras que o acompanham 24 horas por dia.
Há um abismo entre sua vida atual e a que levava dirigindo o Museu de Arte de São Paulo, o que fez por 45 anos. A mesa de sua sala no primeiro andar do prédio 1.578 da avenida Paulista era uma espécie de laboratório de idéias.
Sobre ela, um telefone preto (daqueles antigos, de disco), livros, os jornais do dia e algumas revistas (acompanhava febrilmente as atividades jornalísticas), uma lupa (o problema de visão já o incomoda desde a década de 80) e uma quantidade exagerada de papel.
Bardi escrevia muito, mas tudo a mão e de maneira desordenada sobre folhas de sulfite ou lauda. As canetas de cor verde e vermelha eram as suas prediletas. Seus escritos são impossíveis de decifrar.
Qualquer jornalista em início de carreira sentiria horror ao receber um artigo do professor para publicação, escrito por seu próprio punho e sem tradução.
Talvez a única pessoa capaz de entender os rabiscos de Bardi é Eugênia Gorini Esmeraldo, sua assistente desde 1979, hoje conselheira do Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, além de coordenadora da área de intercâmbio do museu. É ela quem organiza os empréstimos e as devoluções de obras de arte.
Bardi, que às vezes aparecia ''anônimo'' pelos corredores do museu ou pelas alamedas do parque Siqueira Campos, o Trianon, manteve por anos o cacoete que identifica um genuíno italiano: o fato de também falar com as mãos.
Quase como um obsessivo pela perfeição, repetia insistentemente a palavra ''vero'' (verdade). Não se sabe se testava a inteligência alheia ou se dizia o substantivo como se fosse um eco para o seu próprio entendimento. Quando o que lhe era apresentado parecia bom, usava sem deboche e como uma espécie de vício a expressão ''mica male'', que pode ser traduzida por ''não é mau mesmo'' ou ''nada mau''.
Seu caráter centralizador (delegava pouco e apenas o que não podia podia ou não sabia fazer) conferiu-lhe a fama de tirano.
Observava e criticava os trabalhos de conservação de ''seu'' acervo com o mesmo olhar severo que inspecionava a limpeza dos banheiros do museu.
Se as coisas não estavam como queria, implicava _em geral, com Eugênia. Um homem difícil.
Casado com a arquitetura Lina Bo Bardi (1914-92), autora do prédio do Masp e da Casa de Vidro no Morumbi, sempre carregou a alcunha de mulherengo. Mesmo mais velho, não perdia a oportunidade (longe do alcance dos olhos de Eugênia e de dona Lina) de insinuar-se para as mulheres. Mantinha, contudo, uma elegância discreta, cínica e quase paternal. Aos 90 anos, disse: ''Continuo apaixonado por todas as mulheres do mundo inteiro''.
Bardi doou parte de seu acervo pessoal para o Instituto Lina Bo e P.M. Bardi _como assinava seu nome. A venda do quadro ''Dom Sebastião de Orleans e Bragança'', o único personagem da família real portuguesa retratado por Goya, a um museu japonês rendeu US$ 4 milhões ao instituto, dirigido hoje por Graziella Bo Valentinetti, irmã mais nova de Lina e hoje a principal companheira do velho Bardi.
É com esse dinheiro que a instituição paga os enfermeiros e médicos que assistem ao professor, além dos empregados domésticos da Casa de Vidro, onde mora, no bairro paulistano do Morumbi.
Bardi, que nasceu com o século, em 21 de fevereiro, na cidade litorânea de La Spezia, na Liguria, foi muitas coisas antes de se tornar o diretor do maior museu da América Latina.
Futebolista, jornalista, marchand, caricaturista, soldado da artilharia na Primeira Guerra Mundial (aos 16 anos de idade), escritor e crítico de arte.
Não chegou ao Brasil como milhares de outros italianos. Desembarcou por cima, trazendo da península a reputação de respeitável intelectual. Na bagagem, constava também o passaporte de militância no Partido Fascista e a admiração pelo líder Mussolini (1883-1945). Nada, porém que destoasse do comportamento de tantos outros intelectuais italianos que se deixaram seduzir pelo ditador.
Era outubro de 46, Rio. Bardi estava lá para ver uma exposição de arte italiana moderna que organizara. Foi quando conheceu o hoje mitológico Assis Chateaubriand (1892-1968), o Chatô, dono do conglomerado de imprensa Diários Associados.
Há quem diga que Bardi jamais faria o Masp sem Chateaubriand. Ele próprio certa vez declarou: ''Não fiz nada. Foi tudo o Chateaubriand''.
Teve a sorte de ser o homem certo na hora certa, com visão suficiente para transformar em realidade o sonho do museu.
Em 1947, com o mercado de arte em grande movimentação, comprou o primeiro quadro para o Masp, então na rua 7 de Abril: ''Retrato de Mulher'', da fase azul de Pablo Picasso.
Os ventos sopraram a favor até o fim dos anos 50, quando chegou a crise dos Diários Associados, e o acervo passou a crescer mais lentamente.
Na década seguinte, Bardi viveu ao menos três situações complicadas.
A primeira, em 1966, ao decidir participar de uma sociedade bastante polêmica: a galeria Mirante das Artes, que até 1989 funcionou na esquina das ruas Estados Unidos e Augusta, onde hoje funciona uma loja de carros importados.
Como o diretor de um museu poderia tornar-se dono de uma galeria? Há quem diga que Bardi enriqueceu com o negócio, expondo no Masp artistas que venderia no Mirante.
As outras situações foram a morte de Assis Chateaubriand, em 4 de abril de 1968, e a transferência do Masp da rua 7 de Abril para a avenida Paulista, em 2 de novembro de 1968, sem a presença do maior articulador financeiro do museu.
Até 1990, quando o arquiteto Fabio Magalhães assumiu o cargo de curador-chefe, "il professore" trabalhou no atual prédio do Masp.
Em 1992, sentiu-se mal em sua sala. Diagnóstico: ruptura da artéria aorta, no coração. Bardi recuperou-se do baque, mas acabou sendo forçado a abandonar a rotina de trabalho no museu _que visitou pela última vez há dois anos.
Hoje, "il professore", garante Eugênia Gorini Esmeraldo, permanece lúcido, apesar da idade e dos problemas de saúde. "Tão lúcido que ainda se interessa pelas coisas do Masp", diz.
O homem controvertido que conquistou São Paulo e deu ao Brasil seu melhor museu de arte decidiu evitar a reportagem. Prefere permanecer recolhido.
Seu legado será definitivo, ainda que nem sempre receba o tratamento devido: a P.M. Bardi não foi endereçado sequer um convite para a exposição, organizada recentemente, do artista impressionista francês Claude Monet, a recordista de público de seu velho museu.

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