São Paulo, 2 de outubro de 1997

Um reacionário na intimidade

LEON CAKOFF
da Equipe de Articulistas

Fui privilegiado pela convivência com o "professor" por nove longos e seguidos anos. "O professor Bardi já falou mais contigo em um ano do que comigo em 25", brincava o seu fiel assistente Luiz Hossaka.
Orientado por Hossaka _"traga tudo por escrito"_, fui ao Bardi em 1974 oferecer meus serviços para programar o cinema do auditório do Masp. Bardi me recebeu de pé e fingindo pressa _método que o veria aplicar depois cruelmente com visitantes indesejados ou novos artistas candidatos a expositores.
Fui aceito para integrar a pequena equipe do professor graças à minha função jornalística exercida nos então Diários Associados, onde era crítico de cinema e editor de variedades.
Os Diários estavam também na origem do Masp, a mesma origem dos cambalachos e fanfarronices do brilhante Assis Chateaubriand.
Nas infinitas conversas matinais na sala de Bardi, no Masp, chegamos a sonhar com projetos. Alguns deram certo: uma exposição sobre a deterioração urbana de São Paulo, outra dedicada ao Corinthians, a Mostra Internacional de Cinema...
Percebi logo que o que mais excitava Bardi era falar das suas próprias bravatas. Em segundo lugar, com uma admiração juvenil, do Chateaubriand.
Usei muito minha escola de reportagem para ouvir deliciosas histórias, que ele contava com inesgotável prazer. Bardi acionava a tecla do "eu" e soltava o piloto automático.
A sua energia era surpreendente. Tinha 74 anos quando o conheci. Sua fonte de energia? Comer nas horas certas, dizia, nervoso, sempre que batia meio-dia, e dormir cedo.
Por muitos anos sonhamos fazer um filme sobre as suas aventuras pelo mundo com Chateaubriand. Chegamos a consultar o Chacrinha para o papel principal, o que animou o "Velho Guerreiro".
P.M. Bardi, como assinava qualquer documento do museu, dirigia o Masp com pulso de ferro. Delegava para poucos o que não podia fazer sozinho. Para programar cinema eu tinha carta branca. "Não entendo de cinema", dizia.
Oficialmente, era um entusiasta. Na intimidade, negava recursos para o progresso e era o maior reacionário. Receava irritar os militares, o poder... Vícios da velha escola de Chateaubriand, que construiu um império jornalístico sem nunca respeitar obrigações fiscais.
Bardi não tinha o rabo preso com o poder, mas o passado dos Diários, misturado com a origem do Masp, parecia condená-lo por igual. "Nós precisamos do dinheiro público", tentava me convencer, "não podemos ficar trazendo esses filmes cubanos, socialistas", temia.
Não que eu fosse um entusiasta de tudo que ele temia, mas sabia que o Masp era útil para escudar iniciativas contra o marasmo provocado pela censura no país. Felizmente, a batalha com o Bardi era só interna. As discussões sempre terminavam com a sua felicidade de ver o auditório do Masp lotado.
Chateaubriand era seu mestre. Tinha razão em repetir que não havia na história empresarial brasileira atrevimento igual. "Qual é o outro rico brasileiro que deixou um monumento do porte do Masp?", desafiava.
Nos bastidores, Bardi era ciumento do seu museu. Reclamava que eu era da camorra. Que se ele trouxesse uma exposição de Picasso, era capaz de ter menos repercussão do que a minha programação de cinema. E isso antes mesmo do nascimento da Mostra, em 1977.
Brincava dizendo que ele devia ceder ao capricho dos tempos, que cinema era a arte do século, um depositário de todas as artes, inclusive das plásticas.
"Invente aí uma coisa especial para outubro", me disse, "que o museu faz 30 anos e vamos comemorar". Inventei a Mostra, e ele, maroto, me fisgou pelo entusiasmo, com sua estratégia de desacreditar: "Vai ser impossível, você não vai conseguir".
O seu ego inesgotável tinha paz quando recebia a visita de jornalistas. Adorava dar entrevistas. Gostava mesmo era de conversar com repórteres... do sexo feminino. Como bom velhinho, repetia as mesmas histórias. Não deve haver jornalista que não tenha ouvido Bardi contar que já era repórter aos 14 anos, em plena Primeira Guerra Mundial.
Com tantas lembranças do passado, parecia natural que Bardi resistisse a tudo que fosse moderno. De equipamentos a artes. Inclusive rock. Lembrava enfurecido o dia em que Rita Lee havia atraído multidões ao auditório do Masp. Dizia que lá não era lugar para tal tipo de música e público. E não tinha nenhuma queixa das outras multidões, as mesmas tribos, que a minha programação de cinema atraía.
Do passado, Bardi só desconversava o assunto da sua presença na corte mussoliniana. A sua colaboração nos assuntos da arquitetura e das artes plásticas na Itália fascista era um tabu.
Em fevereiro, às vésperas de uma reportagem comemorativa do seu 97º aniversário para a Folha, Bardi me soltou, pela primeira vez, a sua intrincada defesa sobre esse passado nebuloso: "Mussolini estava indo muito bem... até que vieram os antifascistas."

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