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'Eu não fiz nada. Foi tudo
o Chateaubriand'
Às vésperas dos 97 anos, o outrora tempestuoso fundador
do Masp fala hoje com modéstia
LEON CAKOFF
da Equipe de Articulistas
Para quem tem quase um século de idade e ainda acha pouco, viver
é um ato permanente de rebeldia. Pietro Maria Bardi, fundador do
cinquentenário Masp (em outubro próximo), faz 97 anos amanhã,
mas tem cismado ultimamente, como contou à Folha, que de fato está
fazendo 100 anos. A sua contabilidade extra-oficial depende de lances
particulares de memória.
Recluso em sua casa de vidro, projetada pela mulher Lina Bo Bardi (1914-1992)
e construída no bairro do Morumbi em 1951, Bardi diz com bom humor
que não se tem saudades depois dos 90 anos.
Com insistência e com sabor de ficção-científica,
o monumento aposentado que reuniu no Masp a maior coleção
de arte ocidental da América Latina, em nome e a pedido de Assis
Chateaubriand, rebusca os melhores anos da sua vida na longínqua
aldeia de La Spezia, na Liguria italiana, onde oficialmente nasceu em
21 de fevereiro de 1900.
Bardi viveu apenas os primeiros 14 anos da vida em La Spezia. E revela
estar ainda lá o segredo da sua longevidade: os contados 160 degraus
da escadaria do edifício em que morava e que subia e descia várias
vezes por dia para brincar, estudar e, revelando com rubor ainda adolescente,
correr atrás de seus primeiros rabos de saia.
Bardi tem a saúde debilitada e uma memória que resolve ativar
com variações de humor imprevisíveis. Escuta mal,
a catarata debilitou a visão e caminha com muito esforço
e ajuda. Três enfermeiras revezam-se 24 horas do dia para assisti-lo.
Mas a sua principal companhia acabou sendo Graziella Bo Valentinetti,
irmã mais nova de Lina Bo Bardi, hoje responsável pelo Instituto
Lina Bo e P.M. Bardi, pelo acervo do casal doado ao instituto e pela famosa
Casa de Vidro, tombada pelo Patrimônio Histórico e que um
dia será aberta ao público.
Graziella ainda está na fase de catalogação do acervo
particular do casal Bardi, com a colaboração de Eugênia
Esmeraldo, ex-secretária do Bardi no Masp desde 78 e hoje também
conselheira do instituto. O instituto gera um fundo de cerca de US$ 5
milhões, da venda de um Goya ("Retrato de Don Sebastián
Gabriel de Bourbon y Bragança", de 1810) para o museu Fuji,
de Tóquio, que pertencia à enorme coleção
particular trazida pelo casal Bardi ao Brasil depois da Segunda Guerra,
para uma exposição no Rio de Janeiro, em 1946.
Enquanto faz o que pode para preservar a memória da irmã
e de Bardi _no momento, prepara a exposição "O Impasse
do Design", com trabalhos deixados por Lina, na Triennale de Milão_,
Graziella lamenta a última polêmica do Masp.
"Estão arruinando o museu", diz, referindo-se à
discussão sobre a disposição do acervo da pinacoteca
do Masp em bases de concreto e vidro. "Se Lina quisesse um museu
convencional, teria feito um museu convencional."
Desapareceu o tempestivo e autoritário Bardi. Graziella diz poupá-lo
das notícias ruins do mundo. Cativo e feliz das lembranças
que povoam o seu passado, ironia do destino, Bardi fala hoje com surpreendente
modéstia.
"Eu não fiz nada, foi tudo o Chateaubriand", balbucia
com dificuldade.
Entre longos silêncios, solta também suas máximas
resolutas: "Tudo que fiz é porque encontrei o senhor Assis
Chateaubriand... É tudo uma questão de dar e receber...
Eu fiz muita safadeza... Meu primeiro livro é um opúsculo
dedicado a Geremia Bentham (escritor inglês)... Em seguida, virei
repórter da Primeira Guerra Mundial... No auge do fascismo virei
personagem".
Bardi lembra com orgulho o seu desafio lançado a Mussolini com
uma exposição assistida pelo próprio ditador, contra
a "arquitetura do horror" (as formas neoclássicas da
arquitetura fascista triunfante) e a favor da jovem tendência racionalista
(concreto e vidros como em Le Corbusier).
"Mussolini disse que 'forse' (talvez) eu tivesse razão."
Sobre a política e os políticos Bardi não tem mais
ilusões: "Deixe que se arranjem... Hoje não se pode
mais fazer política. Os verdadeiros políticos desapareceram
no século 19... Mais importante que tudo é ver o mundo..."
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