São Paulo, 26 de Setembro de 1995

Bartók foi o mais húngaro
dos compositores


Os 50 anos da morte do músico que ditou princípios da etnomusicologia provam seu testemunho de um tempo inominável

ARTHUR NESTROVSKI
Especial para a Folha

Faz exatamente 50 anos, hoje, que Béla Bartók morreu, num pavilhão de leucemia em Nova York. Auto-exilado em repúdio ao fascismo, Bartók continuou sendo o mais húngaro de todos os músicos húngaros. Sem contradição, foi também o mais cosmopolita, como o foram também o russo Stravinski e o austríaco Schoenberg, ao lado de quem Bartók compõe o trio de compositores mais importantes do século.
No curso da década de 1920, Bartók viajou pela Hungria, Romênia, Eslovênia e Servo-Croácia, e também pelo norte da África. Recolheu cerca de 10 mil melodias populares e estabeleceu os princípios da etnomusicologia moderna.
Em seu país, foi inicialmente reconhecido e mais tarde vilipendiado pelo seu interesse em outras culturas, de acordo com as oscilações do espírito nacional. Reafirmou repetidas vezes que seu interesse era a qualidade da música.
O papel da música popular nas composições de Bartók não se restringe ao uso pitoresco de melodias, escalas e ritmos. O que lhe interessa, na música húngara como na turca ou árabe é o que ele chamava de "variabilidade contínua" dos elementos da composição.
É certo que a música folclórica lhe inspirou maneiras de escrever para além da tonalidade e que o ambiente sonoro da sua música está mais perto, às vezes, da Europa do leste e da África do que da tradição ocidental. Mas este é um ambiente que abarca, igualmente, as lições de Strauss e Debussy, de Beethoven, Liszt e (entre os contemporâneos) Stravinski e Schoenberg. É um mundo inventado, onde tudo está posto segundo uma regra única e inimitável.
Bartók foi um grande pianista e escreveu admiravelmente para o seu instrumento, que ele tratava mais como percussão do que como uma voz. Também compôs originalmente para as cordas e inventou um tipo de "pizzicato" que leva o seu nome. Seus seis quartetos são tidos como o maior ciclo de quartetos desde Beethoven.
Mestre da orquestração, ele é o precursor da escola polonesa de Lutoslawski e Penderecki. De forma menos explícita, mas igualmente crucial, é a sombra de Bartók que se adivinha por trás da música do maior compositor húngaro da atualidade, Gyõrgy Ligeti.
Foi seu conterrâneo Erno Lendvai quem descreveu, pela primeira vez, na década de 60, a utilização de formas geométricas e, em especial, da seção áurea, para organizar um número de suas melhores obras. (A mesma idéia fora empregada por Debussy.) São maneiras de combater o automatismo das formas tonais, pelo automatismo de formas não tonais. Dito de outro modo: são formas.
Entre o cromatismo e o diatonismo, entre o popular e o erudito, entre o arcaico e o novo, Bartók se impõe com a força rara de uma arte modesta e apaixonada. A "Música para Cordas, Percussão e Celesta", o "Concerto para Orquestra", os "Concertos para piano e violino", a "Cantata Profana", os quartetos, a "Suíte de Danças", a "Sonata para Dois Pianos e Percussão", o "Divertimento", os balés "O Mandarim Miraculoso" e "O Príncipe de Madeira", e a pequena ópera "O Castelo de Barba Azul": são vinte obras-primas.
Discreto e íntegro, corajoso em tempos de pobreza como de fartura, Bartók soa hoje, também, como a testemunha de um tempo inominável. Seus famosos noturnos e cenas da noite recuperam, com certa nostalgia, a visão de um mundo que se perdeu e registram, a seu modo, a pressão sombria de um desastre ainda maior. É uma música da sobrevivência, de uma outra vida.

ARTHUR NESTROVSKI é professor na Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica e coordenador do Centro de Estudos da Cultura da PUC/SP.



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