São Paulo, 19 de Novembro de 1994

Compositor injetou sol e veneno na bossa nova


RUY CASTRO

Especial para a Folha

Com Ronaldo Bôscoli, morre um grande letrista da bossa nova –o mais característico, o mais explicitamente carioca. Seu empenho em ensolarar a música brasileira dos anos 50, em torná-la alegre, ágil, jovem e, ao mesmo tempo, romântica e inteligente, nunca foi valorizado como merecia.
Somente os que viveram o ambiente pesado e de fossa dos tempos pré-bossa nova, com aquelas letras que faziam de cada homem um corno e de cada mulher uma vilã, podem avaliar o impacto sobre a juventude provocado pelas canções que tiveram Bôscoli como letrista. Quando ele dizia: "Você, um beijo bom de sal/ Você, de cada tarde vã/ Virá sorrindo de manhã", estava abrindo os olhos de toda uma geração desabituada a ver lirismo e saúde em forma de música.
Sua produção foi surpreendentemente pequena para o tamanho de sua influência. Exceto por Vinicius de Moraes (seu ex-cunhado e maior admiração), Bôscoli deixou sua marca em todos os letristas da bossa nova. E, no entanto, não foram mais do que umas 50 canções –mas tantas dessas foram sucesso que, entre 1961 e 1964, o rádio parecia tocar apenas Ronaldo Bôscoli.
Quase sempre em parceria com Roberto Menescal, seu parceiro mais constante e com quem ele produziu uma série de canções inesquecíveis que falavam do mar: "Ah!, Se Eu Pudesse", "Nós e o Mar", a genial "Rio", "A Morte de um Deus de Sal" e, claro, "O Barquinho". Menescal e Bôscoli, juntos, formavam o que chegou a ser chamado de "o Caymmi da zona sul" –com a vantagem de que suas canções não deixavam o ouvinte mareado.
Mas, antes de juntar os arpões com Menescal (com quem produziu outras delícias como "Você", "Telefone", "Tetê" e "Vagamente"), Bôscoli foi parceiro de Carlinhos Lyra em canções fundamentais da aurora da bossa nova, em 1958: "Saudade Fez um Samba", "Se É Tarde me Perdoa" e a popularíssima "Lobo Bobo" –que Lyra construiu sobre as harmonias do tema de o Gordo e o Magro e para cuja letra Ronaldo fez uma moleque paródia das adaptações infantis de João de Barro.
O próprio verso inicial –"Era uma vez um lobo mau/ Que resolveu jantar alguém"– era malicioso. Na verdade, Bôscoli chegou a escrever "comer" em vez de "jantar", mas teve sua audácia rebatida pelo censor Augusto da Costa, ex-beque do Vasco e da Seleção.
Sua parceria com Lyra foi interrompida em 1959, depois de uma briga entre eles que quase rachou ao meio a bossa nova. Mas, quando perguntei-lhe certa vez qual, de todas, era a sua letra favorita, ele respondeu "Canção que Morre no Ar", a última que fez com Carlinhos, pouco antes da briga.
Vista de São Paulo, a participação de Ronaldo Bôscoli na bossa nova parecia a de um simples letrista. Os que o acompanhavam ao nível do mar sabiam que era mais do que isto: na sua dupla condição de jornalista (de "Manchete", "Ultima Hora" e outros), ele foi o articulador da bossa nova como movimento, plantando matérias em jornais, polemizando com os "quadrados" e chamando para si as brigas e inimizades que a bossa nova despertava.
Também nisto Bôscoli estava em seu elemento: poucos podiam ser mais hilariantemente viperinos –desde que a piada não fosse dirigida contra você.
E havia outro motivo para que ele atraísse a ira de tantos: seu sucesso com as mulheres. Cite uma cantora da bossa nova ou estrela da televisão dos anos 60 e há poucas chances de que ele não a tenha namorado –sempre dando a impressão de que fazia isto por tarefa. "Pela bossa nova, namoro até o Trio Irakitan", dizia.
Mas não foi preciso ir tão longe: namorou Nara Leão, viveu com Maysa e, para surpresa dos amigos e inimigos de ambos, casou-se com sua arquidesafeta Elis Regina em 1967. O casamento durou cinco anos de brigas, reconciliações e mais brigas, e gerou um filho, o hoje baterista João Marcelo.
Quando Elis morreu, em 1981, os dois havia anos só se falavam por seus advogados –mas Bôscoli cometeu um desatino para seus padrões: tomou um avião no Rio (tinha pânico de entrar num) e veio a São Paulo vê-la.
Nos últimos 20 anos –com o fim da música popular tal como ele a entendia–, trocara sua brilhante veia de letrista pela condição de roteirista dos shows de Augusto César Vanucci na Globo e, em parceria com Miéle, dos shows anuais de Roberto Carlos. Nada que o fizesse entusiasmar-se.
O veneno tornou-o amargo. Mas ainda conseguia voltar seu humor característico até contra si próprio, como no dia em que, depois da sua primeira e gravíssima operação na próstata, em 1989, foi visitado no hospital pelo velho amigo Roberto Menescal.
Este entrou no quarto e, ao ver Ronaldo cadavérico, com os braços em cruz, atados a um litro de sangue e a outro de soro, quis chorar. Mas Bôscoli recebeu-o com a pergunta:
"Vai de tinto ou vai de branco?"


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