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"O Amante" foi o livro de maior sucesso
LEYLA PERRONE-MOISÉS
especial para a Folha
Marguerite Duras
nasceu a 4 de abril de 1914 na Indochina francesa, o atual Vietnã.
Tendo enviuvado, sua mãe, professora primária, colocou tudo
o que possuía na compra de um terreno onde pretendia cultivar arroz;
mas logo descobriu que fora enganada.
Em determinada época do ano, suas terras eram inundadas pelo mar,
o que ocasionava a perda total da colheita. Arruinada e amarga, incapaz
de garantir a educação dos três filhos, que enveredavam
para a marginalidade, regressou à França quando Marguerite
tinha 17 anos.
Essa luta inglória da mãe contra a sociedade e o clima colonial
foi o tema do primeiro romance de sucesso publicado por Duras em 1950:
"Uma Barragem contra o Pacífico". Mas seu nome só
se firmou quando assinou o roteiro do famoso "Hiroshima Meu Amor",
de Alain Resnais, em 1959. Desde então, Duras produziu uma obra
vastíssima, que inclui dezenas de romances, peças de teatro
e filmes.
A vida de Marguerite Duras se confunde com sua obra: boa parte desta é
autobiográfica e boa parte daquela foi dedicada à escrita.
Podemos dividir sua obra literária em cinco fases ou maneiras:
a "realista", a do "novo romance", a "romanesca",
a "escritural" e a "transparente".
A primeira fase, tributária do romance norte-americano, é
predominantemente narrativa. No já citado "Uma Barragem contra
o Pacífico", em "O Marinheiro de Gibraltar" (1952)
e "Os Cavalinhos de Tarquínia" (1953), encontramos uma
narradora hábil, capaz de criar tramas interessantes e personagens
verossímeis, representativas de certo mal-estar social e psicológico
da primeira metade do século.
Os livros da segunda fase têm afinidades com o então triunfante
"noveau roman", mais pela temática da ausência,
da solidão e da errança do que pelo experimentalismo técnico,
que não atraía a autora. Desta safra podemos citar "Le
Square" (1955), "Moderato Cantabile" (1958) e "A Tarde
do Senhor Andesmas" (1962).
A terceira fase corresponde ao encontro de um estilo próprio e
de um universo romanesco inconfundível. A essa fase pertencem "O
Êxtase de Lol V. Stein" (1962), obras cujas intrigas e personagens
se entrelaçam, e acabam por desembocar nos filmes "Nathalie
Granger, A Mulher do Ganges" (1973) e "India Song" (1975).
O realismo das primeiras ficções cede então lugar
a fantasias tecidas sobre situações raras, vividas por personagens
fascinantes: um vice-cônsul que atira a esmo sobre a multidão,
uma embaixatriz entediada e infeliz, fatal para os homens que dela se
aproximam.
Por seu caráter fantasmático, esse setor da obra de Duras
constituirá uma espécie de tesouro, a que ela recorrerá
obsessivamente. Trata-se de um território à parte, que a
crítica chamou de "Durásia". É aí
que os leitores ou espectadores aderirão apaixonadamente à
autora ou, inversamente, passarão a detestá-la, sendo a
indiferença impossível. Lacan analisou "Lol",
mais tarde Godard colocaria a própria Marguerite num filme.
Cunhou-se o adjetivo "durasiano", prova incontestável
de reconhecimento público. Daí para diante, em seus livros
como em seus filmes, Duras se concentrará, cada vez mais, em situações
e diálogos minimalistas, incansavelmente retomados. Seus filmes
explorarão a duração psicológica e a ausência
de acontecimentos _"Vera Baxter" (1976), "O Caminhão"
(1977)_, o mesmo ocorrendo em seus livros _"Navire Night" (1979),
"Outside" (1981), "A Doença da Morte" (1982).
Pela indefinição de gênero e pelo tratamento poético
do texto, essas obras correspondem ao que, nos anos 70, se teorizou como
"escritura". Uma escritura de primeira grandeza, que tem afinidades
com a de Clarice Lispector. Quando todos pensavam que Marguerite não
mudaria mais e continuaria sendo aquela autora obsessiva e hermética,
sublime e irritante, ela surpreendeu a todos publicando "O Amante"
(1984), narrativa de leitura amena e, ao mesmo tempo, um texto de grande
qualidade estética.
Neste livro, Duras contava a face oculta da história de "Uma
Barragem contra o Pacífico": o escandaloso romance da adolescente
francesa de 15 anos com um chinês, relação iniciática
e inesquecível.
Como surpresa seguinte, Duras publicou "A Dor" (1985), narrativa
igualmente autobiográfica em que ela relembra os anos da ocupação
nazista. Segundo testemunho da autora, foi um livro que escreveu chorando.
Narra a volta de seu marido, que pertencia à Resistência,
do campo de concentração em que estivera preso; estava paralítico
e o amor entre ambos também já havia mudado, o que tornava
a magia duplamente irreparável.
Nessas duas obras, o estilo de Duras apresenta-se transparente e "fácil",
por outras palavras, clássico. "O Amante" tornou-se logo
um best-seller, foi traduzido em dezenas de línguas e ganhou vários
prêmios, entre eles o Goncourt. Foi transformado em filme que a
autora renegou.
Famosa, respeitada e temida, Marguerite Duras parece então sentir-se
para além do bem e do mal. Divide seu tempo entre o apartamento
parisiense de Saint-Germain-des-Près e a casa de campo na Normandia.
Velha senhora indigna, entrega-se ao álcool: em outubro de 1988
foi internada em estado de coma e permaneceu depois hospitalizada por
vários meses, para desintoxicação. Ligou-se então
a um jovem de 30 anos, Yann Andréa, amante, enfermeiro e personagem.
Sem se esquecer da dureza de sua juventude e dos crimes do nazismo, critica
o Partido Comunista mas mantém-se decididamente de esquerda, cética
diante da queda dos muros e declaradamente hostil à nova direita
racista.
Sem papas na língua, Marguerite choca a cada entrevista, confessa
seu apego ao dinheiro e às jóias, tão duramente conquistados,
revela as taras mais inconfessáveis suas e dos outros, sofre processos
por calúnia e, quando os perde, paga mas não se cala. Em
1993, foi condenada a pagar US$ 2 mil ao partido de extrema direita Frente
Nacional, por ter dito que seus militantes eram "os assassinos, os
porcos, o rebotalho dos tempos modernos".
Cumpridas sua vida e sua obra, ambas longas e intensas, Duras pode morrer
satisfeita. E, na hora fatal, certamente terá revisto duas mulheres:
a mãe, heroína lamentável de uma história
de malogro, e a embaixatriz Anne-Marie Stretter, com seu vestido de gaze
e seu perfume envolvente.
Dessas duas mulheres, uma amada e odiada na convivência familiar,
outra apenas entrevista numa longínqua colônia, nasceu toda
uma obra literária, fílmica e teatral, certamente das mais
importantes de nosso século.
Leyla Perrone-Moisés
é ensaísta e crítica literária, autora de
"20 Luas" (Cia. das Letras), entre outros livros
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