São Paulo, 31 de janeiro de 1999


Conciso, irônico e niilista


Em "Homem no Espelho do Livro", o inglês James Woodall faz a melhor biografia de Borges já escrita

ROBERTO GONZÁLEZ ECHEVARRÍA

especial para o "NYT Book Review"

Certa vez, quando lhe foi exibida uma biografia dele, diz-se que Jorge Luis Borges teria afirmado que provavelmente se tratava de um bom trabalho, mas que o tema não o interessava. No entanto, esse homem _que, ao que se sabe, teria tido uma vida quase inexistente para além de seus livros e que descartava qualquer que fosse a vida que tinha como inconsequente_ já foi tema de diversas biografias, e há mais por vir. Um escritor que se deliciava em escrever críticas a livros inexistentes tornou-se, assim, o assunto de livros sobre sua existência, frequentemente qualificada como comezinha, de ensaísta, editor, poeta e contista, bibliotecário e, mais tarde, professor de literatura. A ironia cerca tudo que envolve Borges, o escritor, e Borges, o homem.
"O Homem no Espelho do Livro", de James Woodall, é a melhor biografia geral disponível sobre essa figura influente. Um jornalista inglês que mora em Berlim, Woodall está a uma distância interessante de seu assunto, em parte por ser não argentino (nem sequer latino-americano) e em parte porque Borges morreu há mais de dez anos.
Pesquisado com competência e exibindo um conhecimento mais que adequado da história e política argentinas, o livro de Woodall ganha com o fato de que ele não é um estudioso da literatura latino-americana: por isso pôde se aproveitar da indústria de Borges sem se deixar apanhar no esforço por transformar seu tema em monumento. Ele não está envolvido nas disputas sobre o legado literário de Borges (que ele registra de forma justa) e não toma partido nas controvérsias quanto à posição política do escritor, que felizmente se amorteceram nos últimos anos. Woodall aproveitou o melhor das biografias anteriores sem comentar seus pontos fracos. Ele nos deu um retrato muito preciso do homem e uma visão geral sofisticada de sua obra. Uma das virtudes do livro é que ele não tenta ser borgiano.
Os "fatos" da vida de Borges podem ser resumidos muito rapidamente: nascido em 1899 em Buenos Aires, filho de uma família culta, mas não rica, ele estudou na Argentina e na Europa e voltou à sua cidade natal em 1921. Sua carreira literária começou a sério nos anos 30, ainda que seu trabalho não se tenha tornado disponível amplamente em inglês antes dos anos 60. Nos seus anos de velhice, ele palestrou em diversos países, mas se sentia mais confortável na solidão discreta de sua biblioteca; Borges viveu a maior parte de sua vida na companhia de sua mãe viúva, que lia para ele à medida que a cegueira o dominava, progressivamente. Casou-se pela primeira vez aos 68 anos, com uma namorada de infância, e divorciou-se três anos mais tarde. Poucas semanas antes de sua morte, em 1986, se casou com sua secretária e companheira de viagens, no passado uma de suas alunas.
A única coisa que lamento em relação ao livro, de resto judicioso, de Woodall é que ele não conseguiu resistir à tentação de tratar da sexualidade de Borges. Uma grande obra parece estar sempre fora de proporção em relação ao ser humano que a concebeu, que sempre parece comum em comparação. Um crítico precisa encontrar algum motivo para a originalidade, e o mais fácil que existe é transformar o autor em um deslocado ou iconoclasta. No caso de Borges, a iconoclastia não era opção, de modo que (como outros antes dele) Woodall voltou-se à estranha vida amorosa de Borges em busca de explicação.
Nesse caso, o distanciamento de Woodall o desorientou, fazendo com que aplicasse concepções de sexualidade do hemisfério norte a um homem que, por longa parte de sua vida adulta, encontrou lugar na sociedade hispânica como solteirão. Admitidamente desajeitado com as mulheres, Borges era um homem latino-americano de sua era. Sentia-se dilacerado entre sua adoração por uma mulher como Estela Canto, uma uruguaia rica que se tornou uma de suas confidentes, e o desejo sexual que ele podia satisfazer (e às vezes satisfazia) com outras mulheres.
Infelizmente, o equívoco de Woodall tende a transformar a oposição de Borges a Perón, a quem o escritor culpava pela perda de seu posto de bibliotecário, em um drama psicossexual barato no qual Borges repudiava o modelo "macho" do líder porque jamais seria capaz de preenchê-lo. Isso é reducionismo em relação a Borges, que se opunha ao fascismo por motivos morais, filosóficos e até mesmo estéticos. Woodall é mais perceptivo ao afirmar que "se Borges pode nos ensinar alguma coisa hoje (...), é que a imaginação humana, aquela capacidade de construção do mundo interior, continua a valer uma vida inteira de dedicação".
É tentador atribuir o estilo literário de Borges _sua ambiguidade elegante, seu desdém pela realidade, seu apreço pelo paradoxo_ à sua cegueira no fim quase total, ao fato de que lhe foram dados "os livros e a noite", como ele diz em um de seus poemas, uma ironia que "não deve", acrescenta, "ser desvalorizada por lágrimas ou reprovações". Com desdém semelhantemente olímpico Borges encarava a maior parte dos principais discursos literários do século 20; exceto por um flerte com a vanguarda em sua juventude, ele ignorou os movimentos artísticos.
Ele não gostava de romances porque, em sua opinião, estes se comprazem em tipos psicológicos anormais que no fim se tornam previsíveis. Além do mais, ele não gostava de livros longos, alegando que há páginas demais em Proust que são tão tediosas quanto a vida mesma. Conservador em termos políticos, Borges sentia repulsa teórica e prática pelo marxismo. Avesso à sentimentalidade, ele rejeitava a política e a poética de identidade cultural que dominaram a América Latina por tanto tempo. Em um país como a Argentina, tão ansioso quanto a modas intelectuais e artísticas passageiras, Borges rejeitou-as todas e tornou-se ele mesmo uma delas.
Woodall está certo ao falar do controle de Borges como escritor. O que é mais notável sobre sua prosa é a ausência de remanescentes da retórica romana, uma grande realização em um idioma latino, mas uma vitória frequentemente perdida nas traduções para o inglês. É também incomum que, embora econômica ao extremo, sua prosa dependa tanto de adjetivos. Eles criam o agora famoso efeito borgiano por meio de nuances sutilmente contraditórias. É como se as coisas, idéias, palavras só existissem para ele em suas variações, em seus pequenos desvios em relação a uma essência há muito abandonada, esquecida ou inexistente. Há muito humor em Borges, bem como algo de caprichoso, como quando ele proclama que as histórias de detetives são a forma literária mais eminente ou quando exalta um escritor menor como Ernesto Carriego, mas descarta Ortega y Gasset por uso excessivo de metáforas.
A estratégia mais sustentada de Borges era a concisão. Ele não escreveu um romance ou tentou erigir uma doutrina filosófica. Em lugar disso, produziu ensaios sucintos que podem ser lidos como contos, e contos que se lêem como ensaios sucintos. Dessa forma, criou um subgênero pessoal de ficção. Seus livros (mais notadamente "Ficções" e "O Aleph") são como montagens de partes desconexas que sugerem que um dia poderiam ter pertencido a um todo, mas um todo que só poderia ter existido na forma de negação.
Borges sentia nostalgia por grandes criações como a "Divina Comédia", mas acreditava, não sem alguma melancolia, que elas não eram mais possíveis no mundo moderno. Ele se sentia da mesma forma em relação a sistemas filosóficos intrincados, que lhe pareciam resultar de arrogância intelectual, cômica ou tragicamente condenados ao fracasso, subprodutos de nossa ânsia desorientada por utopias.
Entre os mestres do século 20, Borges se compara a Kafka devido à ironia resignada e ao orgulhoso niilismo. A força mais positiva em seu universo é a imaginação, capaz de vasculhar o abismo do ser em vislumbres passageiros, mas intensos. A revelação e o autoconhecimento conduzem, no trabalho de Borges como na tragédia clássica, à morte, como se a realização intelectual fosse provocada, como uma alucinação, pela extinção iminente do ser.
No conto "A Morte e o Compasso", o detetive prova que sua teoria está certa quando o criminoso que ele finalmente encurrala o mata. Uma das contribuições mais originais de Borges à literatura moderna foi sua capacidade de encapsular a tragédia em um gênero menor como a história de detetives.
Woodall escreve de maneira vívida sobre a fascinação do jovem Borges por enciclopédias, que "inaugurou uma dependência perene de informação catalogada, em lugar de pesquisada". Isso devia-se não a uma preferência pela superficialidade, mas a uma desconfiança quanto ao anseio por organizar o conhecimento. Borges gostava de sublinhar, muitas vezes de forma humorística, a arbitrariedade das classificações, e a enciclopédia é um emblema perfeito para esse ceticismo. É uma metáfora borgiana ideal diferente das especulações intrusivas da biografia. "Os incidentes da vida desse autor", escreveu Borges sobre Kafka certa vez, "não propõem outro mistério que sua relação não examinada com sua obra extraordinária". Poder-se-ia dizer o mesmo de Borges facilmente.

Roberto González Echevarría é professor de literaturas hispânica e comparada na Universidade Yale (EUA). Seu mais recente livro é o "The Oxford Book of Latin American Short Stories".

A OBRA
Jorge Luís Borges - O Homem no Espelho do Livro - James Woodall. Tradução de Fábio Fernandes. Ed. Bertrand Brasil (av. Rio Branco, 99, 20º andar, CEP 20040-004, RJ, tel. 021/263-2082). 4365 págs. R$ 49,00.



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