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Uma falha do deus do labirinto
Enfrentar as ciladas presentes nos textos
de Borges é um dos desafios de sua crítica
ADRIANO SCHWARTZ
da Redação
Em um dos ensaios que escreveu sobre Dante e ''A Divina Comédia'',
Jorge Luis Borges diz que ''apaixonar-se é criar uma religião
em que Deus é falho''. Poucos escritores chegam ao final deste
século tão idolatrados pela crítica e por outros
escritores quanto o autor de ''Ficções'' e ''O Aleph''.
A fama internacional, porém, não veio logo. Só quando
tinha pouco mais de 60 anos, em 1961, que Borges foi devidamente (re)conhecido
pelo mundo, ao dividir com Samuel Beckett o primeiro prêmio Fomentor,
criado por seis das principais editoras do Ocidente um ano antes.
No mesmo ano, já totalmente cego, viajou aos EUA, na primeira das
várias viagens internacionais que faria a partir de então.
Em 63, voltou à Europa _onde passara tantos tempo quando jovem_,
após uma ausência de quase 40 anos.
Nos anos seguintes, duas publicações distintas confirmariam
seu sucesso. A revista ''L'Herne'' fez um número especial inteiramente
dedicado a ele, e o filósofo francês Michel Foucault abriu
seu livro ''As Palavras e as Coisas'', que provocou imenso impacto quando
foi lançado na França, com uma longa citação
do autor.
Como suposta condenação por ter apoiado durante algum tempo
o regime militar argentino, ele, talvez o escritor mais influente da segunda
metade do século, manteve-se, entretanto, sempre afastado do Prêmio
Nobel de literatura, que foi dado, entre outros latino-americanos, a Gabriel
García Márquez _um escritor, de certo modo, diametralmente
oposto a Borges.
Na longa lista de autores diretamente influenciados pelo argentino, podem
ser incluídos, por exemplo, Italo Calvino, Georges Perec e Umberto
Eco _que o homenageou com Jorge, o bibliotecário cego de seu mais
famoso romance, ''O Nome da Rosa''_; isso sem falar nos seus vários
seguidores latino-americanos e nos seus compatriotas argentinos, como
o amigo Adolfo Bioy Casares, Julio Cortázar _de quem publicou o
primeiro conto_ e Ricardo Piglia.
Outro que o apreciava era Vladimir Nabokov, e é bom lembrar que
o escritor russo-americano, que nasceu em 1899, no mesmo ano de Borges
(e não é tudo, aliás, que têm em comum...),
não via qualquer importância em autores como Faulkner, Brecht
e Camus: ''Tenho que me esforçar muito para não acreditar
em uma conspiração contra minha inteligência quando
vejo que são aceitos calmamente como 'literatura maior' '', dizia.
Críticos de várias correntes e nacionalidades seguem a mesma
linha desses escritores. Mas há, obviamente, exceções.
Em um dos ensaios do livro ''Extraterritorial'', apesar do tom de admiração
e respeito, o francês George Steiner faz ressalvas à obra
do argentino. Escreve, por exemplo, que Borges construiu apenas uma personagem
feminina consistente, a personagem do conto ''Emma Zunz''. ''Em todo o
resto da sua obra'', continua, ''as mulheres são toldados objetos
das fantasias ou lembranças dos homens''. Talvez seja verdade,
mas não é o mesmo que criticar Mallarmé por não
ter escrito um romance, ou Guimarães Rosa por ter ambientado grande
parte de seus textos no sertão?
No passado, criticou-se também a ''alienação'' de
Borges, sua desvinculação da história (tema, por
outro lado, de absoluto fascínio para alguns). Estudos mais recentes,
contudo, mostram que isso não acontece na obra do defensor da ''arte
detida e rudimentar da leitura'', para lembrar uma frase borgiana cara
a Davi Arrigucci Jr., um de seus maiores estudiosos brasileiros, penetrante
analista do ''modo de ler'' de Borges _modo de ler ''os textos, o mundo,
a tradição'' (em ''Enigma e Comentário'').
Se as várias camadas inerentes a cada um de seus textos e o prazer
incontido com o jogo literário provocam ainda hoje boas doses de
dificuldade à crítica _para o bem e para o mal_, a postura
do próprio escritor só ajudou a complicar as coisas.
O crítico Emir Rodríguez Monegal conta, em sua ''Biografia
Literária'' do autor, que Borges gostava de manter mistério
sobre seus contos. Monegal mostra, por exemplo, que no conto que dá
nome ao livro ''O Aleph'', Borges faz uma redução paródica
_ao mesmo tempo irreverente e admirativa_ de ''A Divina Comédia''.
O protagonista, que sonhava escrever um poema que representasse todo o
mundo, é Carlos Argentino Daneri, isto é, um DANte AlighiERI
argentino. Sua musa desdenhosa é Beatriz Viterbo, referência
clara a Beatrice de Dante. À descida ao inferno, Borges contrapõe
a descida ao sótão, local em que se encontra o ponto no
qual se vêem todos os lugares ao mesmo tempo, o Aleph _uma tentativa
de descrição do inefável que o argentino faz, mas
que Dante preferiu não arriscar ao final de sua obra. Ocorre que,
apesar das evidências (e não citei todas aqui), Borges preferia
negar tal interpretação. No prefácio a uma edição
norte-americana do livro, ela a recusa explicitamente, agradecendo, com
sua habitual delicadeza, a seus críticos a gentileza de terem pensado
assim.
Devido a essa postura escorregadia, parece-me que algumas interpretações
dadas como absolutamente inquestionáveis, confirmadas inclusive
pelo próprio Borges em entrevistas, podem ser duvidosas. É
o caso de ''A Seita de Fênix''. Em um famoso prólogo a ''Ficções'',
o autor anuncia (e, desse modo, já direciona a compreensão
de seus leitores) que tentou impor-se, no conto, ''o problema de sugerir
um fato comum _O Segredo_ de um modo vacilante e gradual que se tornasse,
ao final, inequívoco''.
Uma leitura atenta resolve, sem dificuldade, a charada: ''O Segredo''
é o sexo, o que ele mesmo confirmava. E tudo assim indica, mas
do mesmo modo que quase todos os indícios põem-se a favor
de tal interpretação, há minúsculas pistas
estranhas a ela. Estariam lá como elementos necessários
à construção do texto? Ou fariam parte de uma grande
''brincadeira'' borgiana com seus leitores?
Em outro de seu prólogos famosos, à ''Invenção
de Morel'', Borges escreve que não seria exagero chamar aquela
obra do amigo Bioy Casares de perfeita. Dele próprio, não
se poderia dizer, entretanto, o mesmo. A falha _redentor paradoxo_ do
deus do labirinto foi ter escrito, naquele ensaio sobre Dante e ''A Divina
Comédia'', aquela frase.
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