São Paulo, 19 de Maio de 1996


Uma falha do deus do labirinto


Enfrentar as ciladas presentes nos textos
de Borges é um dos desafios de sua crítica



ADRIANO SCHWARTZ
da Redação

Em um dos ensaios que escreveu sobre Dante e ''A Divina Comédia'', Jorge Luis Borges diz que ''apaixonar-se é criar uma religião em que Deus é falho''. Poucos escritores chegam ao final deste século tão idolatrados pela crítica e por outros escritores quanto o autor de ''Ficções'' e ''O Aleph''.
A fama internacional, porém, não veio logo. Só quando tinha pouco mais de 60 anos, em 1961, que Borges foi devidamente (re)conhecido pelo mundo, ao dividir com Samuel Beckett o primeiro prêmio Fomentor, criado por seis das principais editoras do Ocidente um ano antes.
No mesmo ano, já totalmente cego, viajou aos EUA, na primeira das várias viagens internacionais que faria a partir de então. Em 63, voltou à Europa _onde passara tantos tempo quando jovem_, após uma ausência de quase 40 anos.
Nos anos seguintes, duas publicações distintas confirmariam seu sucesso. A revista ''L'Herne'' fez um número especial inteiramente dedicado a ele, e o filósofo francês Michel Foucault abriu seu livro ''As Palavras e as Coisas'', que provocou imenso impacto quando foi lançado na França, com uma longa citação do autor.
Como suposta condenação por ter apoiado durante algum tempo o regime militar argentino, ele, talvez o escritor mais influente da segunda metade do século, manteve-se, entretanto, sempre afastado do Prêmio Nobel de literatura, que foi dado, entre outros latino-americanos, a Gabriel García Márquez _um escritor, de certo modo, diametralmente oposto a Borges.
Na longa lista de autores diretamente influenciados pelo argentino, podem ser incluídos, por exemplo, Italo Calvino, Georges Perec e Umberto Eco _que o homenageou com Jorge, o bibliotecário cego de seu mais famoso romance, ''O Nome da Rosa''_; isso sem falar nos seus vários seguidores latino-americanos e nos seus compatriotas argentinos, como o amigo Adolfo Bioy Casares, Julio Cortázar _de quem publicou o primeiro conto_ e Ricardo Piglia.
Outro que o apreciava era Vladimir Nabokov, e é bom lembrar que o escritor russo-americano, que nasceu em 1899, no mesmo ano de Borges (e não é tudo, aliás, que têm em comum...), não via qualquer importância em autores como Faulkner, Brecht e Camus: ''Tenho que me esforçar muito para não acreditar em uma conspiração contra minha inteligência quando vejo que são aceitos calmamente como 'literatura maior' '', dizia.
Críticos de várias correntes e nacionalidades seguem a mesma linha desses escritores. Mas há, obviamente, exceções. Em um dos ensaios do livro ''Extraterritorial'', apesar do tom de admiração e respeito, o francês George Steiner faz ressalvas à obra do argentino. Escreve, por exemplo, que Borges construiu apenas uma personagem feminina consistente, a personagem do conto ''Emma Zunz''. ''Em todo o resto da sua obra'', continua, ''as mulheres são toldados objetos das fantasias ou lembranças dos homens''. Talvez seja verdade, mas não é o mesmo que criticar Mallarmé por não ter escrito um romance, ou Guimarães Rosa por ter ambientado grande parte de seus textos no sertão?
No passado, criticou-se também a ''alienação'' de Borges, sua desvinculação da história (tema, por outro lado, de absoluto fascínio para alguns). Estudos mais recentes, contudo, mostram que isso não acontece na obra do defensor da ''arte detida e rudimentar da leitura'', para lembrar uma frase borgiana cara a Davi Arrigucci Jr., um de seus maiores estudiosos brasileiros, penetrante analista do ''modo de ler'' de Borges _modo de ler ''os textos, o mundo, a tradição'' (em ''Enigma e Comentário'').
Se as várias camadas inerentes a cada um de seus textos e o prazer incontido com o jogo literário provocam ainda hoje boas doses de dificuldade à crítica _para o bem e para o mal_, a postura do próprio escritor só ajudou a complicar as coisas.
O crítico Emir Rodríguez Monegal conta, em sua ''Biografia Literária'' do autor, que Borges gostava de manter mistério sobre seus contos. Monegal mostra, por exemplo, que no conto que dá nome ao livro ''O Aleph'', Borges faz uma redução paródica _ao mesmo tempo irreverente e admirativa_ de ''A Divina Comédia''.
O protagonista, que sonhava escrever um poema que representasse todo o mundo, é Carlos Argentino Daneri, isto é, um DANte AlighiERI argentino. Sua musa desdenhosa é Beatriz Viterbo, referência clara a Beatrice de Dante. À descida ao inferno, Borges contrapõe a descida ao sótão, local em que se encontra o ponto no qual se vêem todos os lugares ao mesmo tempo, o Aleph _uma tentativa de descrição do inefável que o argentino faz, mas que Dante preferiu não arriscar ao final de sua obra. Ocorre que, apesar das evidências (e não citei todas aqui), Borges preferia negar tal interpretação. No prefácio a uma edição norte-americana do livro, ela a recusa explicitamente, agradecendo, com sua habitual delicadeza, a seus críticos a gentileza de terem pensado assim.
Devido a essa postura escorregadia, parece-me que algumas interpretações dadas como absolutamente inquestionáveis, confirmadas inclusive pelo próprio Borges em entrevistas, podem ser duvidosas. É o caso de ''A Seita de Fênix''. Em um famoso prólogo a ''Ficções'', o autor anuncia (e, desse modo, já direciona a compreensão de seus leitores) que tentou impor-se, no conto, ''o problema de sugerir um fato comum _O Segredo_ de um modo vacilante e gradual que se tornasse, ao final, inequívoco''.
Uma leitura atenta resolve, sem dificuldade, a charada: ''O Segredo'' é o sexo, o que ele mesmo confirmava. E tudo assim indica, mas do mesmo modo que quase todos os indícios põem-se a favor de tal interpretação, há minúsculas pistas estranhas a ela. Estariam lá como elementos necessários à construção do texto? Ou fariam parte de uma grande ''brincadeira'' borgiana com seus leitores?
Em outro de seu prólogos famosos, à ''Invenção de Morel'', Borges escreve que não seria exagero chamar aquela obra do amigo Bioy Casares de perfeita. Dele próprio, não se poderia dizer, entretanto, o mesmo. A falha _redentor paradoxo_ do deus do labirinto foi ter escrito, naquele ensaio sobre Dante e ''A Divina Comédia'', aquela frase.



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