São Paulo, 18 de janeiro de 1996

Borges canta sua 'cidade
de percepções'


"Rua desconhecida chama a
atenção apenas do poeta"


RÉGIS BONVICINO
Especial para a Folha

Há uma confusão entre "poético", "poesia" e "poema". As pessoas se sentem ou querem estar próximas do que se chama de "poético". O "poético" é quase sempre vago, impreciso _um espaço de despercepção. A poesia é o território onde aparecem as coisas que os desatentos não percebem.
O primeiro livro de poemas de Jorge Luis Borges, "Fervor de Buenos Aires" (1923), pode ser lido como um roteiro atento daquilo que normalmente não se vê numa cidade.
"Sombra benigna das árvores/ vento com pássaro que sobre ramos ondeia." Assim, fala da Recoleta e "de sua retórica de sombra e mármore" _que diz da "dignidade de estar morto". Rua desconhecida não chama a atenção do desatento, mas chama a do poeta: "Talvez esta hora, da tarde de prata/dê sua ternura à rua/fazendo-a tão real quanto um verso".
A vegetação parece se constituir em obsessão do escritor, que _ ao se referir à plaza San Martin_ escreve: "Todo o sentir se aquieta/sob a absolvição das árvores/jacarandás e acácias..." Elas _jacarandás e acácias_ ainda estão lá?
De que modo Borges trata um simples pátio de Buenos Aires? "Com a tarde/se cansaram as duas ou três cores do pátio/Esta noite, a lua, um claro círculo/não domina seu espaço."
Na verdade, Borges fala de um pátio. Mas do pôr-do-sol em um pátio, com lua cheia. Pátio de poucas cores etc. Tantas percepções e imagens em tão poucas linhas, às vezes passam em branco.
"Lá fora há um pôr-do-sol/prata escuro/engastado no tempo/e uma funda cidade cega/de homens que não te viram." Talvez, valesse à pena prestar a atenção nessa "cidade de percepções".

RÉGIS BONVICINO, 40, é poeta e escritor.




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