São Paulo, 9 de Outubro de 1996


Textos inéditos revelam
'pré-história' de Borges


JOSÉ GERALDO COUTO
Da Reportagem Local

O fantasma de Jorge Luis Borges (1899-1986) continua a assombrar o mundo. Acaba de sair na Argentina um catatau de 450 páginas com textos inéditos em livro do autor de ``O Aleph''.
``Borges en Revista Multicolor'', lançado pela Atlantida, reúne contos, ensaios, resenhas e traduções publicados por Borges em 1933 e 1934 na ``Revista Multicolor de los Sábados'', suplemento do diário argentino ``Crítica''.
O próprio Borges editava o suplemento, em parceria com o amigo Ulyses Petit de Murat. Entre seus colaboradores eventuais estava o brasileiro Monteiro Lobato.
Muitos dos textos que Borges escreveu para a ``Revista Multicolor'' foram depois publicados em livro, sobretudo em ``História Universal da Infâmia'' (1935) e ``História da Eternidade'' (1936).
O volume agora editado reúne apenas os textos não aproveitados pelo autor em livro, o que gerou muita controvérsia na Argentina. Seriam, segundo os opositores da edição, textos ``renegados'' por Borges.
Rascunhos e obsessões
Polêmicas à parte, o livro é uma preciosidade para admiradores de Borges e da boa literatura.
A primeira parte do livro, ``Obras'', inclui contos, ensaios, perfis biográficos e até anedotas escritas por Borges com sua própria assinatura ou sob pseudônimos como Alex Ander, Benjamín Beltrán e Andrés Corthis.
Em sua boa introdução, a pesquisadora Irma Zangara, responsável pela compilação, divaga sobre o motivo de cada pseudônimo.
Quem lê esse conjunto variado de prosas tem uma dupla impressão: nos contos, não se reconhece Borges; nos ensaios, sim.
Se, nestes últimos, o leitor já encontra os temas obsessivos do autor (paradoxos lógicos, mitologias antigas) e seu estilo elegante e irônico de desdobrar seu pensamento, nos contos aparece um Borges ainda tateando às escuras em busca de um objeto e de uma linguagem. São rascunhos de uma obra que seria bem diferente.
História de amor
Um dos mais surpreendentes textos exumados pelo livro é o conto ``No Valia la Pena'', que não só é uma história de amor (gênero evitado pelo autor) como está, desde a forma (parágrafos curtos, à maneira de versículos), eivado de um emocionalismo que o Borges maduro acharia intolerável.
O tema desse conto _o suicídio_ reaparece em ``30 Pesos Vale la Muerte'', história de um jovem literato frustrado em que afloram outros traços estranhos às obras mais refinadas de Borges: o coloquialismo (há até um palavrão), o excesso de notação circunstancial, a prolixidade.
Em compensação, nos perfis biográficos, Borges parecia já se mover em seu elemento. Não por acaso, o livro que publicaria em seguida, ``História Universal da Infâmia'', seria composto de pequenos ensaios desse tipo, em que se misturam a pesquisa erudita e a imaginação fabulosa do escritor.
Os mais interessantes desses perfis, no atual volume, são os dedicados ao poeta Percy Bysshe Shelley, ao ditador paraguaio José Gaspar Rodríguez Francia e ao herege Preste Juan das Índias.
À parte isso, há pequenos e deliciosos ensaios sobre problemas lógicos, em que Borges se diverte divagando sobre a quarta dimensão, a eternidade e o infinito.
Nos dois últimos blocos do livro sobressai o empenho de Borges como formador de leitores.
Em ``Resenhas'' estão os textos curtos em que ele, às vezes de modo ácido, avalia obras então recentes e as relaciona com um contexto literário mais amplo.
Grande parte dos autores resenhados é desconhecida do leitor brasileiro. Há exceções, como o filósofo francês Henri Bergson, o romancista argentino Ricardo Giraldes e o poeta brasileiro Ribeiro Couto, cujo ``Nordeste e Outros Problemas do Brasil'' é desancado como um sub-Walt Whitman.
Por fim, as ``Traduções'' funcionam como uma antologia do gosto pessoal de Borges. São versões magníficas de contos de Dickens, Kipling, Chesterton, Jack London, H.G. Wells e outros autores que o ``bruxo'' amava e tentava introduzir no arrogante espaço literário argentino.

Livro: Borges en Revista Multicolor
Autor:
Jorge Luis Borges
Editora: Atlantida (Argentina)
Encomendas à livraria Letraviva (tel. 011/280-7922)

 


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.