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Borges, o inumerável
JOSÉ GERALDO COUTO
enviado especial a Buenos Aires
Quanto mais as biografias e as pesquisas revolvem a vida e a obra
do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), mais parece multiplicar-se
sua imagem, como os objetos do planeta Tlõn, que não cessam
de se duplicar.
Às vésperas do décimo aniversário de morte
do autor de ''Ficções'' (em 14 de junho), nunca houve tantos
Borges em circulação. Duas biografias controvertidas e polêmicas,
a de María Esther Vázquez (''Borges, Esplendor y Derrota'',
Ed. Tusquets) e a de Marcos-Ricardo Barnatán (''Borges: Biografía
Total'', Ed. Temas de Hoy), acrescentaram voltas a esse labirinto de espelhos
em cujo centro está Borges, minotauro que se ri dos que tentam
capturá-lo.
Um CD-ROM está quase pronto, uma exposição de grande
sucesso em Buenos Aires vem ao Masp (Museu de Arte de São Paulo)
em outubro e pelo menos cinco outras biografias estão em preparação
na França, no Canadá, na Escócia e na Argentina.
A memória de Borges tem seus zelosos guardiães: a viúva
María Kodama, o amigo Adolfo Bioy Casares, a biógrafa e
ex-namorada María Esther Vázquez, o colecionador Nicolás
Helft. A Folha foi ouvir cada um deles, em busca da figura de Borges,
fugidia como a do homem que só se entrevê por intermédio
do olhar dos outros em ''Aproximação a Almotásim''.
No centro das polêmicas está a viúva María
Kodama e sua determinação de editar ou reeditar tudo que
ficou de fora dos três volumes das ''Obras Completas'' do autor.
Estas, aliás, vão ganhar nos próximos meses um quarto
volume, com os livros ''renegados'' que Kodama lançou nos últimos
anos: ''Inquisiciones'', ''El Tamaño de Mi Esperanza'', ''El Idioma
de los Argentinos'' _títulos que Borges aparentemente não
quis fazer constar de sua obra definitiva.
Até o final do ano, deve ser lançado um novo livro inédito
de Borges, com textos publicados pelo autor em revistas e jornais europeus
no início dos anos 20. Nos mesmos moldes, saiu no ano passado ''Borges
en Revista Multicolor'', reunindo textos escritos nos anos 30 para o suplemento
cultural do diário argentino ''Crítica''.
A boa notícia que María Kodama deu à Folha é
a de que o último texto escrito por Borges, o roteiro cinematográfico
''Para Salvar Veneza'', deve ser filmado em breve. A diretora deverá
ser a inglesa Sally Potter _e esta talvez seja a má notícia.
A editora argentina Emecé renovou este ano os direitos de publicação
da obra de Borges em língua espanhola por US$ 1 milhão.
A editora espanhola Alianza pagou outro tanto para ter o direito de editar
Borges em livros de bolso e edições escolares. Apesar disso,
Kodama, única beneficiária dos direitos, diz lutar com dificuldades
para manter sua Fundação Borges, que desde o ano passado
tem uma sede em Buenos Aires.
As duas biografias recém-publicadas divergem quanto ao papel de
María Kodama na vida de Borges (leia ao lado). Para María
Esther Vázquez, ela manipulou o escritor a seu bel prazer em seus
últimos anos de vida. Para Marcos Barnatán, ela foi dedicada
e leal. Desnecessário dizer que Barnatán é favorável
à publicação de textos borgianos ''renegados'', enquanto
Vázquez é contra.
Polêmicas à parte, ambas as biografias são obrigatórias
para os leitores de Borges. Trazem facetas insuspeitadas do escritor argentino,
que nos acostumamos a ver como um velho arrogante e empertigado, com uma
erudição humilhante e intimidadora.
Lendo o livro de Vázquez, por exemplo, aprende-se que durante uma
fase de sua juventude, Borges se embriagava todas as noites, frequentava
bares da malandragem, dizia palavrões. Algumas passagens são
deliciosas. Em 1933, depois de uma noite de boêmia com seu amigo
Néstor Ibarra e o escritor francês Drieu La Rochelle, os
três viram o amanhecer no pampa, nos arrabaldes de Buenos Aires.
Drieu (que se tornaria fascista e em 45 se mataria) formulou, então,
sua famosa definição do pampa: ''Vertigem do horizontal''.
Borges, borracho e ufanista, gritou: ''Es la patria, carajo!''.
Barnatán, por sua vez, destaca a militância política
de Borges, que se manifestou com firmeza contra os franquistas na Espanha,
durante a Guerra Civil, época em que muitos intelectuais argentinos
apoiavam Franco _entre eles, surpreendentemente, o então jovem
Julio Cortázar. Mostra também como o escritor enfrentou
estoicamente o pesadelo da ditadura Perón, que chegou a prender
sua mãe (então com 70 anos) e sua irmã por participarem
de uma manifestação de senhoras.
Ambos os livros contam, com detalhes diferentes, dois episódios
centrais da vida de Borges: seu intento frustrado de suicídio no
dia de seu aniversário de 35 anos, e o acidente que quase o matou
em 1938, quando bateu a cabeça na quina de uma janela aberta.
O suicídio que não houve foi encenado minuciosamente até
o final: Borges comprou um revólver, uma garrafa de genebra e uma
passagem de trem só de ida para Adrogué _cidade da província
de Buenos Aires_, e instalou-se no Hotel Las Delicias. Deitou na cama
vestido, engatilhou o revólver, hesitou, escreveu uns versos, bebeu,
chorou, adormeceu, acordou de ressaca, jogou o revólver num charco
e voltou para casa.
Mais inacreditável é a história, contada por Vázquez,
do primeiro noivado de Borges com Elsa Astete Millán, com quem
se casaria em 1967. No final dos anos 20, Borges se apaixonou por ela
e ficou noivo. Um dia, foi visitá-la, não estava, a mãe
disse que tinha casado com outro. Borges ficou arrasado. Anos depois,
já cego, andava pela rua com o sobrinho Miguel, quando Elsa passou
pelos dois e os cumprimentou. Borges perguntou quem era, o sobrinho lhe
explicou, ele continuou na mesma: tinha-a esquecido. Quando ela ficou
viúva, reaproximou-se dele e se casaram (separaram-se em 70).
A história da cegueira é uma tragicomédia à
parte. Borges se operou oito vezes, sem contar o absurdo enxerto na perna
que Bioy Casares conta à Folha em sua entrevista (à pág.
5-6).
Em 1967, Borges dava uma aula na Universidade de Buenos Aires, quando
um grupo de alunos barbudos invadiu a sala para dizer que havia morrido
Che Guevara e que todos estavam convocados para um ato público.
Borges disse que não interromperia sua aula, e desafiou-os a tirarem-no
da sala na marra. Os barbudos ameaçaram cortar a luz e Borges respondeu,
impávido: ''Tomei a precaução de ser cego esperando
este momento. Podem cortar''.
A cegueira também é um divisor de águas em sua obra.
Para um escritor como Ricardo Piglia (leia à pág. 5-7),
o grande Borges _inventor de tramas complexas e construções
verbais vertiginosas_ acabou no momento em que, por causa da cegueira,
passou a ditar seus textos. Para Bioy Casares, ao contrário, Borges
foi melhorando cada vez mais, depurando sua linguagem e seus temas.
Muitos Borges emergem das páginas dessas biografias, e outros tantos
das conversas daqueles que tiveram a dádiva de conviver com sua
assombrosa inteligência e sua prodigiosa imaginação.
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