São Paulo, 19 de Maio de 1996


Borges, o inumerável



JOSÉ GERALDO COUTO
enviado especial a Buenos Aires

Quanto mais as biografias e as pesquisas revolvem a vida e a obra do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), mais parece multiplicar-se sua imagem, como os objetos do planeta Tlõn, que não cessam de se duplicar.
Às vésperas do décimo aniversário de morte do autor de ''Ficções'' (em 14 de junho), nunca houve tantos Borges em circulação. Duas biografias controvertidas e polêmicas, a de María Esther Vázquez (''Borges, Esplendor y Derrota'', Ed. Tusquets) e a de Marcos-Ricardo Barnatán (''Borges: Biografía Total'', Ed. Temas de Hoy), acrescentaram voltas a esse labirinto de espelhos em cujo centro está Borges, minotauro que se ri dos que tentam capturá-lo.
Um CD-ROM está quase pronto, uma exposição de grande sucesso em Buenos Aires vem ao Masp (Museu de Arte de São Paulo) em outubro e pelo menos cinco outras biografias estão em preparação na França, no Canadá, na Escócia e na Argentina.
A memória de Borges tem seus zelosos guardiães: a viúva María Kodama, o amigo Adolfo Bioy Casares, a biógrafa e ex-namorada María Esther Vázquez, o colecionador Nicolás Helft. A Folha foi ouvir cada um deles, em busca da figura de Borges, fugidia como a do homem que só se entrevê por intermédio do olhar dos outros em ''Aproximação a Almotásim''.
No centro das polêmicas está a viúva María Kodama e sua determinação de editar ou reeditar tudo que ficou de fora dos três volumes das ''Obras Completas'' do autor. Estas, aliás, vão ganhar nos próximos meses um quarto volume, com os livros ''renegados'' que Kodama lançou nos últimos anos: ''Inquisiciones'', ''El Tamaño de Mi Esperanza'', ''El Idioma de los Argentinos'' _títulos que Borges aparentemente não quis fazer constar de sua obra definitiva.
Até o final do ano, deve ser lançado um novo livro inédito de Borges, com textos publicados pelo autor em revistas e jornais europeus no início dos anos 20. Nos mesmos moldes, saiu no ano passado ''Borges en Revista Multicolor'', reunindo textos escritos nos anos 30 para o suplemento cultural do diário argentino ''Crítica''.
A boa notícia que María Kodama deu à Folha é a de que o último texto escrito por Borges, o roteiro cinematográfico ''Para Salvar Veneza'', deve ser filmado em breve. A diretora deverá ser a inglesa Sally Potter _e esta talvez seja a má notícia.
A editora argentina Emecé renovou este ano os direitos de publicação da obra de Borges em língua espanhola por US$ 1 milhão. A editora espanhola Alianza pagou outro tanto para ter o direito de editar Borges em livros de bolso e edições escolares. Apesar disso, Kodama, única beneficiária dos direitos, diz lutar com dificuldades para manter sua Fundação Borges, que desde o ano passado tem uma sede em Buenos Aires.
As duas biografias recém-publicadas divergem quanto ao papel de María Kodama na vida de Borges (leia ao lado). Para María Esther Vázquez, ela manipulou o escritor a seu bel prazer em seus últimos anos de vida. Para Marcos Barnatán, ela foi dedicada e leal. Desnecessário dizer que Barnatán é favorável à publicação de textos borgianos ''renegados'', enquanto Vázquez é contra.
Polêmicas à parte, ambas as biografias são obrigatórias para os leitores de Borges. Trazem facetas insuspeitadas do escritor argentino, que nos acostumamos a ver como um velho arrogante e empertigado, com uma erudição humilhante e intimidadora.
Lendo o livro de Vázquez, por exemplo, aprende-se que durante uma fase de sua juventude, Borges se embriagava todas as noites, frequentava bares da malandragem, dizia palavrões. Algumas passagens são deliciosas. Em 1933, depois de uma noite de boêmia com seu amigo Néstor Ibarra e o escritor francês Drieu La Rochelle, os três viram o amanhecer no pampa, nos arrabaldes de Buenos Aires. Drieu (que se tornaria fascista e em 45 se mataria) formulou, então, sua famosa definição do pampa: ''Vertigem do horizontal''. Borges, borracho e ufanista, gritou: ''Es la patria, carajo!''.
Barnatán, por sua vez, destaca a militância política de Borges, que se manifestou com firmeza contra os franquistas na Espanha, durante a Guerra Civil, época em que muitos intelectuais argentinos apoiavam Franco _entre eles, surpreendentemente, o então jovem Julio Cortázar. Mostra também como o escritor enfrentou estoicamente o pesadelo da ditadura Perón, que chegou a prender sua mãe (então com 70 anos) e sua irmã por participarem de uma manifestação de senhoras.
Ambos os livros contam, com detalhes diferentes, dois episódios centrais da vida de Borges: seu intento frustrado de suicídio no dia de seu aniversário de 35 anos, e o acidente que quase o matou em 1938, quando bateu a cabeça na quina de uma janela aberta.
O suicídio que não houve foi encenado minuciosamente até o final: Borges comprou um revólver, uma garrafa de genebra e uma passagem de trem só de ida para Adrogué _cidade da província de Buenos Aires_, e instalou-se no Hotel Las Delicias. Deitou na cama vestido, engatilhou o revólver, hesitou, escreveu uns versos, bebeu, chorou, adormeceu, acordou de ressaca, jogou o revólver num charco e voltou para casa.
Mais inacreditável é a história, contada por Vázquez, do primeiro noivado de Borges com Elsa Astete Millán, com quem se casaria em 1967. No final dos anos 20, Borges se apaixonou por ela e ficou noivo. Um dia, foi visitá-la, não estava, a mãe disse que tinha casado com outro. Borges ficou arrasado. Anos depois, já cego, andava pela rua com o sobrinho Miguel, quando Elsa passou pelos dois e os cumprimentou. Borges perguntou quem era, o sobrinho lhe explicou, ele continuou na mesma: tinha-a esquecido. Quando ela ficou viúva, reaproximou-se dele e se casaram (separaram-se em 70).
A história da cegueira é uma tragicomédia à parte. Borges se operou oito vezes, sem contar o absurdo enxerto na perna que Bioy Casares conta à Folha em sua entrevista (à pág. 5-6).
Em 1967, Borges dava uma aula na Universidade de Buenos Aires, quando um grupo de alunos barbudos invadiu a sala para dizer que havia morrido Che Guevara e que todos estavam convocados para um ato público. Borges disse que não interromperia sua aula, e desafiou-os a tirarem-no da sala na marra. Os barbudos ameaçaram cortar a luz e Borges respondeu, impávido: ''Tomei a precaução de ser cego esperando este momento. Podem cortar''.
A cegueira também é um divisor de águas em sua obra. Para um escritor como Ricardo Piglia (leia à pág. 5-7), o grande Borges _inventor de tramas complexas e construções verbais vertiginosas_ acabou no momento em que, por causa da cegueira, passou a ditar seus textos. Para Bioy Casares, ao contrário, Borges foi melhorando cada vez mais, depurando sua linguagem e seus temas.
Muitos Borges emergem das páginas dessas biografias, e outros tantos das conversas daqueles que tiveram a dádiva de conviver com sua assombrosa inteligência e sua prodigiosa imaginação.



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