São Paulo, 3 de Abril de 1996


Borges ou do conto filosófico


DAVI ARRIGUCCI JR.
Especial para a Folha

Não é nada fácil dizer em que consiste a novidade de um grande livro como "Ficciones'' (1935-1944), que deu fama internacional a seu autor e marcou para sempre a memória de várias gerações de leitores no mundo todo. No entanto, é a tarefa ingrata destas poucas páginas.
Diante de um livro tão complexo e de tantos lados _por vezes nele se alude à vasta imagem do universo_, é preciso escolher logo um ponto de vista, uma chave de leitura. Preferi não percorrer o custoso labirinto da construção desses contos de execução admirável, nem buscar-lhes saídas interpretativas, que se multiplicam em cada caso. Quis saber antes como lidam com as convenções de gênero e, por essa via, sua relação com a História. O leitor, como sempre, tem a última palavra e dirá se fui feliz.
Borges começou escrevendo poemas e ensaios e tardou a escrever contos. Quando estes vieram, no final da década de 30, por um lado se pareciam muito a seus primeiros escritos (1). Causavam idêntica estranheza ou o mesmo redobrado encanto, mostrando uma liga de inteligência com imaginação sempre rara em toda parte, em qualquer época.
A agudeza podia despontar com o corte lapidar de cada frase, revelando poder de síntese e rigor de construção similares aos do verso. A atitude inquisitiva, de busca intelectual, do narrador lembrava o ensaísta e podia cristalizar em sentenças de tom aforismático, às vezes casadas com muita graça e uma perspectiva de humor desconcertante. E naquela prosa de clareza, concisão e elegância clássicas, cada termo reverberava com uma inesperada ironia. Assim, tudo no conjunto confluía de algum modo para um resultado único, de efeito artístico avassalador.
Por outro lado, porém, os contos eram de uma novidade espantosa e não se deixavam explicar apenas pela filiação à literatura fantástica, a que pertenciam em sua maioria. O fantástico tinha já uma longa tradição no Rio da Prata, formando uma corrente importante, vinda do século passado, quando surge Borges. Este deu-lhe a devida atenção, destacando a obra de vários escritores que o precederam no gênero principal a que se dedicou. Foi o caso, por exemplo, do contista uruguaio Horacio Quiroga, ou do argentino Leopoldo Lugones, a quem se refere muitas vezes, sem falar num caso ímpar, mas muito presente, como o do amigo Macedonio Fernández, ou em outros que praticamente tirou do esquecimento, como Santiago Dabove. Fora, havia decerto os grandes representantes do gênero, dos quais cita vários, como Poe, Hawthorne, Wells, Chesterton ou Henry James, e, claro, Kafka à frente, com quem suas histórias sustentam um elo permanente de afinidade profunda.
Mas a filiação borgiana a esta linhagem de narradores fantásticos, seja interna ou externa, não basta para se compreender o que havia de novo em suas ficções. Ajuda a situá-las no contexto de origem e talvez possa esclarecer traços de sua composição. É provável, contudo, que aqui a novidade ou o espanto não dependam tanto do fantástico, mas antes de uma conjunção insólita de arte com pensamento.
Ainda na década de 40, quando só haviam sido publicados uns poucos relatos, Adolfo Bioy Casares, seu amigo e colaborador constante, assinalou que Borges havia criado "um novo gênero literário que participa do ensaio e da ficção'', destinando-o "a leitores intelectuais, estudiosos de filosofia, quase especialistas em literatura'' (2). Talvez não seja bem assim, mas a observação é sagaz pelos traços decisivos que detecta, quanto à mistura de gêneros e ao teor intelectual e filosófico das narrativas. Pode ainda orientar no reconhecimento crítico da singular fisionomia dessas histórias.
A questão é que Borges impôs desde logo o desconcerto _talvez a mesma perplexidade que dizia sentir diante do universo. A tarefa agora é compreendê-lo em seu modo de ser particular, até o limite do irredutível _aquilo que atua desde o instante de impacto inicial de seus memoráveis contos. Convém buscar, sem pressa.

Arte e pensamento
Benedetto Croce, cujas idéias estéticas são tão influentes na época em que surgem esses contos, opõe arte a pensamento, oferecendo um parâmetro à tentativa de compreensão de Borges.
Considera a poesia uma forma de conhecimento, mas conhecimento intuitivo do particular, capaz de ir além do mero sentimento, que ela transfigura, encontrando a universalidade na própria particularidade, como uma expressão imediata e ritmada do universo. Ao contrário, o pensamento, fora da esfera intuitiva, seria antes a sistematização do universo, reduzido aos signos prosaicos do conhecimento conceitual. O ritmo, alma da expressão poética, é para ele inerente a toda intuição artística e, por isso, característico também das outras artes, manifestando-se em todas elas com esse ou outro nome. Forma ritmada do universo, a arte pertenceria assim a uma esfera diferente, oposta ao conhecimento sistemático próprio do pensamento. A presença de qualquer mediação reflexiva destrói, segundo ele, a imediatez necessária à expressão poética genuína, a qual só na plenitude da imagem alcança a universalidade e a totalidade que lhe dão o caráter de poesia (3).
Não obstante essa distinção, e contrariamente à opinião do filósofo italiano, nosso tempo escolheu reconhecer o pensamento como inerente ao modo de ser da arte. A reflexão artística, voltando-se muitas vezes sobre si mesma, acabou por se fazer uma característica interna das obras de arte, frequentes portadoras de poéticas inclusas, apaixonada e especularmente debruçadas sobre o próprio processo de sua constituição. E assim, também os artistas pensadores se tornaram centrais à nossa tradição, caracterizada por alto grau de autoconsciência do fazer artístico.
Essa é, como se sabe, uma das marcas da modernidade nas artes. Sob esse aspecto, elas se enraizam fundamente no século passado e mesmo antes, nas diversas manifestações em que a simbiose de criador e crítico, a concepção do estilo sem ingenuidade ou a presença de uma consciência artística auto-reflexiva já anunciavam o reino da crítica dos tempos modernos.
Jorge Luis Borges é decerto um desses artistas centrais de nosso século, herdeiro da tradição de lucidez moderna, saído de uma literatura até então mal conhecida internacionalmente, que ele logo marcou com o raro exemplo do rigor intelectual e o alto padrão de sua escrita. É impossível tratar de sua obra, sem considerar seu perfil de poeta douto, reflexivo e crítico, pois ele está imiscuído nela como projeção dessa consciência autoral que a torna arte pensamenteada (4) todo o tempo.
Ele, que abomina o romance psicológico, é uma espécie de anti-Proust, um escritor absolutamente não confessional. A todo momento, entretanto, por ilimitados meios de espelhamento, por citações inumeráveis, constrói mil e uma imagens de si mesmo, de uma persona literária interna aos textos, autor multiplicado, demiurgo ou deus do labirinto especular _o "hacedor'' recorrente e inapreensível. Um inventor de ficções invadidas por uma autoconsciência tão pronunciada, que levou Octavio Paz a considerá-lo, a certa altura, como o criador de uma "obra única, edificada sobre o tema vertiginoso da ausência de obra'' (5).
Na verdade, Borges soube ritmar o próprio pensamento, dando expressão artística a uma constante reflexão sobre a literatura e a certas generalizações abstratas sobre o universo, por vezes mais contundentes que as imagens concretas que deste se pudesse ter. Seu poder de impacto e novidade se deve, em larga medida, a essa junção original de arte com pensamento que soube operar desde o começo de sua produção literária na década de 20. Chegado da Europa, depois da Primeira Guerra, se entregou à paixão ultraísta que de lá trouxera: metaforizava com fervor, cumprindo o papel de jovem introdutor da vanguarda na Argentina, o que logo renegaria.
Desde cedo, talvez por impulso das idéias vanguardistas, tendeu a dissolver as fronteiras dos gêneros literários (ou talvez porque aceitasse, nesse sentido, a famosa postulação de Croce, a quem gostava de citar). O fato é que mescla as formas do poema, do ensaio e da narrativa, mas sempre com a marca do escritor que pensa por abstrações e não apenas por imagens. Isto contribuiu realmente para dar uma forma singular aos textos que escreveu desde então. Mostram-se muito marcados pela mola inquisitiva do pensamento ensaístico, que arma reiteradas hipóteses e conjeturas sobre os mais variados assuntos, em geral com alto teor intelectual ou dimensão teórica, mesmo dentro dos poemas e, pouco depois, dos contos, que demoraram mais a surgir autonomamente, mas desde o princípio se misturavam dissolutamente às poesias e aos ensaios.
Penso que essa posição reflexiva do escritor, ao ser levada ao espaço da ficção na figura do Narrador, onipresente, como se disse, em seus relatos, transforma profundamente a matriz do conto literário que ele trabalha. Por esse ângulo, provoca mudanças substanciais no modo de ser da narrativa curta, a que imprime uma fisionomia de fato singular, em grande parte responsável pelo impacto de novidade de suas "Ficções''.
A matriz do conto
Pode-se imaginar o "frisson'' que deve ter causado nas páginas do nº 68 de "Sur'', em maio de 1940, a leitura de um conto como "Tlõn, Uqbar y Orbis Tertius''. Seguindo, na mesma revista, a "Pierre Menard, autor del Quijote'', de maio de 1939, instalava a narrativa fantástica na linha de frente da literatura argentina (6).
O primeiro impacto vinha da civilização fantástica que, de repente, pela conjunção famosa de um espelho e de uma enciclopédia, se intrometia em nosso universo. Depois, era o mundo do autor que também se intrometia no da ficção: Borges e seus amigos apareciam como personagens do conto. E assim se multiplicavam os mundos em osmose, para horror dos heresiarcas de Tlõn (7) e assombro do leitor.
Mas, o verdadeiramente novo em tudo isso era o modo como se construía o conto por obra de outro leitor mais terrível e tenebroso: o narrador. O leitor da história se deparava com um duplo no fundo do espelho da ficção: uma espécie de comentador, inquiridor e intelectualizado, dado a minúcias, abstrações e ironias, que quase só narrava argumentos conjeturais, tirados de outros livros incontáveis que sempre tinha lido ou cuja existência inventava. Lembrava por vezes um bibliotecário ilusório que recolhesse zelosamente a uma biblioteca ilimitada e lacunar os volumes imaginários sempre em falta.
Entre os motivos do espanto, figuravam, pois, o livro e a biblioteca como imagens labirínticas do universo. O Narrador bibliotecário era quem multiplicava os espelhos e o assombro: muito da novidade residia no jogo intelectual com os elementos ambíguos da ficção e da realidade, ou seja, com o fantástico. Borges, o ficcionista, era um manipulador intelectual do espanto. O fantástico, espécie de quintessência da ficção _nele os jogos do "como se'' que instauram o universo ficcional se radicalizam_ se faz uma forma de expressão da perplexidade quanto à natureza da realidade. A metafísica se converte efetivamente num ramo da literatura fantástica.
Fascinado também pelo rigor de construção das narrativas de aventura e das intrigas policiais, cujo artifício preciso e desnorteante gosta de percorrer, Borges retorna por vezes a esses gêneros, modificando-os substancialmente no mesmo sentido com que joga com o fantástico. Quer dizer: para adulterá-los pelo teor de perquirição filosófica e explicitação irônica do jogo intelectual que neles introduz. Assimila, portanto, fórmulas desses gêneros a esquemas que na verdade pertencem a outra modalidade de narrativa, para a qual aquelas são propriamente deslocadas.
Na esteira das histórias policiais ou de aventura, se refere muito a Poe, Stevenson, Chesterton, De Quincey e a muitos outros mais, como se os tomasse por modelos. Todos eles podem ter eventualmente pesado em seu ideal de prosa, de construção do relato ou mesmo lhe terem valido enquanto solução pontual de aspectos técnicos ou temáticos, mas não lhe forneceram os esquemas básicos, mais fundos e característicos do conto em que inova.
Creio que, em suas mãos mais do que hábeis, o conto, da perspectiva da inovação que o torna único e surpreendente, reata raízes não da herança romântica do século 19, nem sequer precisamente da tradição do fantástico (embora também o faça), mas recua até a tradição do conto filosófico do século 18, de corte voltairiano.
Com efeito, é ali que se encontra uma abertura da fantasia aos espaços exóticos, imaginários e utópicos de outros mundos estranhos onde é permitido desconfiar do nosso. Ali se acham os canais livres para a perplexidade metafísica, para os jogos com a filosofia idealista e as dúvidas irônicas sobre nossa própria condição, assim como um padrão similar de leveza e mobilidade intelectual, associadas a certas tomadas de distância e modulações relativizadoras da expressão muito ao gosto borgiano. Ali, por fim, se acha ainda uma abertura para o fantástico, que se casa perfeitamente vem à vertente fantasiosa ou extravagante desse tipo de conto.
Não é apenas pela qualidade do estilo que se pensa em Borges, ao reler Voltaire, a quem o primeiro cita inúmeras vezes e talvez nenhuma sem um elogio. Há realmente uma afinidade grande na situação e nos movimentos do Narrador dos contos borgianos com relação aos "Contes Philosophiques''. Mas não ficam aí os traços constitutivos que podem depender dessa herança fundamental, enlaçada na base ao sentimento da alteridade, profundamente arraigado no espírito do escritor argentino (8).
Borges, evidentemente, terá trabalhado a fundo no rumo da invenção pessoal, com o domínio e a força de grande escritor que tudo transforma, mesmo quando retoma a matriz histórica de um gênero ou um feixe de convenções artísticas bem conhecidas. Vale, no entanto, a pena repensar a fórmula básica do conto voltairiano para melhor reconhecimento do modo de ser específico do conto borgiano.
Como observou Jean Starobinski a propósito das dualidades do estilo e da filosofia de Voltaire, esse tipo de conto é dominado pela lei da dualidade, que o obriga a desdobrar-se: de um lado, o plano da história (em que prestamos atenção no destino das personagens); de outro, o plano do discurso (em que nos fixamos nas idéias do narrador e em sua destreza em exprimi-las) (9).
Na verdade, essa dicotomia latente em toda narrativa e reconhecível pela análise, aflora no conto filosófico pelo papel sobressalente que nele se atribuiu ao narrador. Este tende a impor sua visão do mundo intelectualizada, dando livre curso à fantasia intelectual e à observação humorística. Além disso, costuma estender-se em digressões, fazendo uso irônico de vasta erudição e, por vezes, tende à simplificação das personagens, descarnando-as em atitudes mentais ou reduzindo-as a caricaturas. A mistura de fantasia com reflexão moral, como se dá em Voltaire, parece essencial à forma dessa modalidade de narrativa. Logo se vê que ela depende em profundidade de uma disposição espiritual específica que tem suas raízes prováveis na tradição da sátira.
Northrop Frye fornece elementos para que se trate o "conte philosophique'' voltairiano como uma forma breve de anatomia. Esse é o termo com que ele designa a forma moderna da antiga sátira menipéia, também conhecida como sátira de Varrão, apoiando-se no modelo inglês da "Anatomia da Melancolia'' (1621), de Robert Burton (10). Em sua forma longa, a anatomia em geral guarda certa independência com relação à tradição do romance, ao qual muitas vezes se combina (como no "Tristram Shandy'', de Sterne), distinguindo-se por traços diversos de estruturação, pois se trata de uma modalidade de prosa de ficção extrovertida e voltada para o mundo exterior como o romance, mas muito mais intelectualizada, estilizada e digressiva, centrada na dissecação analítica de temas e atitudes intelectuais, dando asas à erudição enciclopédica e, por vezes, a certa dose de pedantismo (11). (Em Borges, em cuja obra se reconhecem vários desses traços, o humor sempre leva vantagem sobre o pedantismo).
Petrônio, Apuleio, Rabelais, Swift e Voltaire, entre tantos outros, seriam exemplos ilustres de avatares dessa tradição. Num ensaio sobre "Bouvard et Pécuchet'', cuja afinidade com essa tradição também foi assinalada por Frye, Borges demonstra aguda consciência dessa linhagem de escritores a que vincula a obra do último Flaubert. Ao assinalar que ela rompe o padrão do romance realista criado com "Madame Bovary'', mostra também que ela "mira, hacia atrás, a las parábolas de Voltaire y Swift y de los orientales y, hacia adelante, a las de Kafka'' (12). Parece estar delineando assim sua própria filiação.
E o que é ainda mais importante, do ângulo que aqui interessa: destaca o que se poderia chamar de técnica de deslocamento empregada tanto por Swift quanto por Flaubert. Para falar dos desejos da humanidade e da história universal, o primeiro os atribui a pigmeus ou a símios; o segundo, a dois sujeitos grotescos. O procedimento equivale, em certa medida, à técnica do "dépaysement''_ a utilização de um personagem transplantado no estrangeiro, num meio estranho ou exótico_, largamente empregada por Voltaire, de que o autor de "Ficciones'' tiraria igualmente enorme proveito.
Na época do conto voltairiano, já se está, é claro, muito distante dos modelos primitivos da sátira, e a fórmula moderna do conto, apoiada decerto no chão histórico da necessidade de esclarecimento, se converte, não num instrumento de difusão de verdades filosóficas assentadas, mas num meio novo de busca pela fantasia combinada à reflexão. Como se sabe, Voltaire tardou a chegar ao conto filosófico _o termo só aparece no tomo 13 de suas obras, em 1768_, sucedendo a um longo período de desconfiança com relação à prosa de ficção, a que seu espírito filosófico parecia rebelde, persa que era do gosto clássico (13). De início, tratava o gênero como fábula, conto de velhas, romances das Mil e uma noites, devaneios, extravagâncias, parecendo-lhe algo inverossímil, uma absurda mitologia cujos erros e crendices deveriam ser corrigidos pela razão: "Au commencenment était la fable, à la fin viendra la raison'' (14).
Ao espírito extrovertido do filósofo, avesso às confissões à maneira de Rousseau, o caminho do conto filosófico, que se tornará o espaço de eleição de suas interrogações, dúvidas e angústias mais profundas, é também o itinerário de uma longa aprendizagem. Van Den Heuvel, que lhe estudou o percurso, assinala o espaço ficcional dos contos como o lugar de uma projeção simbólica. Nele, a experiência vivida do escritor ganha a dimensão universal através dos jogos da fantasia e do humor que encontram exatamente sua fórmula de expressão no conto filosófico.
O ponto essencial dessa fórmula, que, segundo aquele estudioso, nasceria com o exílio de Voltaire na Inglaterra, é exatamente a transplantação dos personagens para uma realidade outra. Nisto fará eco às famosas "Cartas Persas'' de Montesquieu, tornando o deslocamento espacial uma condição da liberdade intelectual: uma libertação do espírito para a crítica, situado num quadro novo em que pode se mover com facilidade, completamente aberto às "luzes''.
A experiência histórica, conforme a lição de Heuvel, estava na base das invenções ficcionais de Voltaire, mas sua imaginação pode ter-se acendido com o modelo literário próximo de Montesquieu, a quem parecia, no entanto, desprezar. E também a fórmula de Montesquieu tinha antecedentes bem conhecidos, sendo produto provável de uma tradição histórica já consolidada, de que se podem citar os exemplos de Marana, Dufresny, etc (15). Como em Borges, os espelhamentos são múltiplos, e a face original, inapreensível, perdida no labirinto infindável dos reflexos sucessivos.

O contista e a história
Essa vertente de Borges aqui exposta talvez tenha ajudado a formar, ao longo dos anos, a figura um tanto equívoca de um escritor intelectualista e cosmopolita, à margem da História. Imagem desgarrada, que só cresceu com o renome internacional do autor, a partir de "Ficciones''. Assim cresceram também os equívocos a respeito de sua obra.
Tornou-se um lugar-comum da crítica vê-lo como o autor de uma visão alucinada do universo, artista da linguagem centrado sobre si mesmo e sempre isolado do real, posto além das circunstâncias imediatas, pairando num universalismo abstrato, meio fantasmal. Buscando o fundamento interpretativo na autoridade do próprio autor, comentarista de si próprio, a maioria dos críticos tendeu a fazer dos ditos de Borges sobre a literatura os ditos da crítica sobre Borges. Por uma espécie de petição de princípio, transformou o que deveria interpretar em fundamento da interpretação.
Desse modo, Borges desrealiza-se cada vez mais, à medida que passa o tempo, tendo colaborado bravamente para isto. "Será preciso explicar que sou o menos histórico dos homens?'', pergunta ele pouco antes da morte, em 1986, no prefácio às obras completas da edição da Pléiade (16). No entanto, linhas abaixo, acrescenta: "Para fruir convenientemente de qualquer obra é preciso situá-la no contexto de seu momento histórico''. A colocação contraditória e irônica repercute, porém, menos do que era de se esperar, e a caracterização ilusória é o que predomina na consideração crítica do escritor. Que a natureza de seu conto, fundindo arte e pensamento, tenha contribuído para isso não é das menores ironias do escritor.
Num ensaio sobre Hawthorne, de "Otras Inquisiciones'', em que traça a história de uma metáfora _a de literatura como sonho_ Borges distingue, sem fazer juízo de valor, entre escritores que pensam por imagens, como Donne ou Shakespeare, e outros, como Benda ou Bertrand Russel, que pensam por abstrações (e os que, como o próprio Hawthorne, insinuam conceitos mediante imagens alegóricas). O paralelismo me faz sempre pensar naquilo que o separa, a ele, Borges, enquanto autor de famosas abstrações que soube fundir em não menos notáveis imagens, de outro grande escritor de seu tempo que pensava fundamentalmente por imagens, por intuições, Guimarães Rosa. Em ambos a questão da História parece ter sido descartada _a literatura sempre lembrando um sonho desgarrado_, sendo, no entanto, decisiva, para sua compreensão.
Comparado com o nosso Guimarães Rosa logo se nota de fato que, por assim dizer, fingem ao contrário um do outro. O primeiro trabalha com figuras do pensamento, saídas sobretudo dos livros; o outro, com imagens concretas, aparentemente extraídas da experiência direta da realidade. Na verdade, porém, quando se observa melhor e mais a fundo, é notável o peso da realidade imediata em Borges, e muitas as mediações culturais em Rosa. A funda e complexa oposição entre ambos, sugere, entretanto, que se pense na dificuldade específica com que cada um desafia a crítica.
A dificuldade crítica no caso de Rosa é compreender como nele se universaliza a visão de um mundo particular _o sertão; como sua penetração nessa região específica é capaz de dar a ver, travestida nas imagens das estórias de capiaus mineiros, uma verdade humana geral e um mundo tão vasto e complexo quanto o nosso. Dante, Shakespeare, Goethe, Plotino ou Platão, se presentes (como tantas vezes, também em Borges), vêm reencarnados mediante traços físicos ou anímicos, atos, modos de vida, pormenores materiais ou espirituais de seres viventes que existem com toda a verossimilhança realista, em sua total complexidade humana. São caracteres do Sertão Mundo, criações artísticas de um regionalismo cósmico com as quais pode se identificar o homem de qualquer latitude, posto diante de personagens consistentemente problemáticos e concretos pela força da arte. Embora as marcas do tempo histórico sejam tênues no interior do sertão rosiano, elas existem, e este vem sempre referido ao mundo urbano, submetendo-se ao processo histórico, m mudanças constantes, supondo níveis distintos de realidade histórica em mistura sui generis, que não tem cara muito diferente daquela do país a que remete.
Em Borges, ao contrário, a dificuldade é compreender criticamente o lastro particular do universalismo ostensivo. Ele se acha já na própria matéria tratada, feita da generalidade do pensamento ou da universalidade do conceito, do saber erudito e livresco, alimentado pela leitura incessante, pelas citações inumeráveis da literatura universal. Um universo ficcional cujas amarras concretas existem, mas vêm ocultas ou descarnadas em situações imaginárias e posições específicas na obra, diagramáticas e abstratas (17). É essa a forma que toma o pensamento feito arte. Em Borges, é como se tudo se tivesse desgarrado de todo contexto histórico, para existir em absoluta autonomia com relação à realidade, sempre avessa, na sua opinião, a toda espécie de transcrição artística.
A oposição funda que separa dois dos maiores narradores que conheceram nossas letras exige, portanto, para sua exata compreensão, o reconhecimento histórico de seu verdadeiro modo de ser, onde talvez se encontrem para além das diferenças. Esta vasta e difícil empresa é, no entanto, matéria para outra história. Como no conto de Voltaire, a verdade histórica também faz parte do sonho da ficção.
Neste livro singular e extraordinário, o leitor encontrará reunidos os contos que deram fama internacional a Jorge Luis Borges. Os adjetivos que o acompanham mal exprimem a complexidade de suas múltiplas faces. Primeiro, a estranha marca de originalidade desses escritos inovadores, que renovaram o conto moderno. Depois, o caráter fora do comum de seus temas, abertos para o fantástico e a inesperada dimensão filosófica do tratamento. Por fim, a qualidade ímpar de sua prosa: na tradição hispânica, nenhuma brilhou tanto, desde o Século de Ouro de Cervantes e Quevedo.
Na carreira literária de Borges, o conto veio por tateios tímidos, depois de poemas e ensaios, aos quais por vezes já se mesclava. Quando por fim despontou, no final da década de 30, revelou, para assombro do leitor, um outro leitor mais tenebroso e singular que os bons autores que pudesse conhecer. Com efeito, grande parte da novidade da narrativa dependia de um narrador que era sobretudo um leitor inquieto e filosofante, sempre pronto a tirar da leitura, real ou fantasiada, o móvel da escrita. Esse comentador de todos e de si mesmo, era o deus de múltiplos labirintos que os enredos desses contos imitam num jogo infindável de espelhos, especulações e conjeturas, às vezes com a perícia das intrigas policiais e o rigoroso gosto da aventura, para quase sempre desembocar na perplexidade metafísica.
Pode-se imaginar a felicidade daquele que pela primeira vez se deparará com o universo fantástico de Tlõn, a memória de Funes ou com o duelo de arrabalde em que de novo joga a vida Martín Fierro. Aos demais, aos iniciados no inefável segredo, as recorrentes, inesgotáveis, inesquecíveis linhas e entrelinhas de Borges _o autor que, à semelhança de Shakespeare, quis ser todos e nenhum.
(1) A rigor, o primeiro conto de Borges foi "Hombre de la esquina rosada'', publicado na revista "Crítica'', em 1933, com o título de "Hombres de las orillas'', que passou a fazer parte da "Historia Universal de la Infamia'', em 1935. Em seguida veio "El Acercamiento a Almotásim'', publicado com a primeira edição, de 1936, da "Historia de la Eternidad''; passou a integrar, em 1941, a coletânea de contos de "El Jardín de Senderos que se Bifurcan'', para ser incorporado, definitivamente, em 1944, à primeira edição de "Ficciones''. Só em 1939, com "Pierre Menard, autor del Quijote'', começa efetivamente a série de contos que daria renome a Borges.
(2)Cf. Bioy Casares, A., "Prólogo'' a Borges, J. L.; Ocampo, Silvina e Bioy Casares, A. - "Antologia de la Literatura Fantástica'', Buenos Aires, Sudamericana (1940), pág. 13
(3) Resumo alguns dos argumentos principais de "La Poesia'' (1935)
(4) Emprego o neologismo de Mário de Andrade, que vem a calhar
(5) Cf. Paz, O. - "Corriente Alterna'', México, Siglo Veintiuno Editores (1970), pág. 40
(6) Ver, nesse sentido, King, John - "Sur. Estudio de la Revista Argentina y de su Papel en el Desarrollo de una Cultura, 1931-1970'', México, Fondo de Cultura (1986), sobretudo cap. III. Para a interessante "petite histoire'' da colaboração de Borges na revista, ver também os comentários de Jean Pierre Bernès, em sua "Notice'' a propósito de "Ficções'' em Borges, J. L. - "Oeuvres Complètes''. Ed. de J. P. Bernès, Paris, Gallimard (1993), vol. I, págs. 1539 e ss. (Col. "Bibliothèque de la Pléiade'')
(7) Como se sabe, os heresiarcas de Tlõn abominam tudo o que multiplique o número dos homens, como os espelhos e as cópulas
(8) É curioso observar como Borges, que sob vários aspectos se parece tanto a Machado de Assis, para ele, ao que tudo indica, completamente desconhecido, também com relação à técnica de narração mostra a mesma semelhança. Não será por mera coincidência, pois se ligam, até certo ponto, a uma tradição comum, em que contam, entre outros fatores, os reflexos do conto filosófico. Ao tratar do aparente arcaísmo da técnica machadiana, Antonio Candido lembra que na forma do narrador bisbilhoteiro, com o "tom caprichoso de Sterne'', com seus saltos e brincadeiras, havia também "um eco do 'conte philosophique', à maneira de Voltaire''. Ver Candido, A. - "Esquema de Machado de Assis''. Em seus: "Vários Escritos'', S. Paulo, Duas Cidades, 1970, sobretudo págs. 21-23
(9) Cf. Starobinski, J. - "Le Fusil à Deux Coups de Voltaire'', "Revue de Métaphysique et de Morale'', Paris, A. Colin, julho/set., 1966, nº 3, pág. 283
(10) Num de seus últimos textos, o prefácio da edição de suas obras completas da "Pléiade'', Borges sugere que esse seu livro feito de livros seja lido não seguidamente, mas como se folheia uma enciclopédia ou a obra de Burton
(11) Ver Frye, N. - "Formas Contínuas Específicas da Ficção em Prosa''. Em sua: "Anatomia da Crítica''. Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos, S. Paulo, Cultrix (1973), sobretudo págs. 303-307. Na obra teórica de Mikhail Bakhtin, se encontra também amplo desenvolvimento da tradição da sátira menipéia, que ele examina com apoio da história social da cultura cômica popular, centrando-se na obra de Rabelais. Ver, desse estudioso, "L'Oeuvre de François Rabelais et la Culture Populaire au Moyen Age et sous la Renaissance'', Paris, Seuil (1970)
(12) Cf. Borges, J. L. - "Vindicación de 'Bouvard et Pécuchet'. Em: "Discusión. Obras Completas'', Buenos Aires, Emecé (1989), vol. I, págs. 159-262. A citação se acha à pág. 262
(13) Veja-se o importante estudo, em que me baseio, de Heuvel, Jacques Van Den - "Voltaire dans ses Contes'', Paris, Armand Colin, 1967. Na sua "Introduction'', vem esboçada a posição inicial de Voltaire com relação ao conto, págs. 7-11
(14) Cf. "Op. cit.'', pág. 8
(15) Cf. "Op. cit.'', cap. II, sobretudo págs. 29-30
(16) Cf. Borges, J. L. - "Oeuvre Complètes'', pág. 8, ed. cit., ver acima nota (6)
(17) Num livro recente, "Out of Context. Historical Reference and the Representation of Reality in Borges'' (Durham and London, Duke University Press, 1993), Daniel Balderston dá um passo importante no sentido de contextualizar a obra de Borges. No entanto, os vínculos que estabelece entre a obra e o contexto histórico não são vistos como componentes da estrutura estética, elementos transfundidos na própria tessitura e no modo de ser mais íntimo dos textos, mas antes como alusões veladas a um referente exterior, cuja pertinência parece discutível em vários casos.

Este ensaio, que o "Jornal de Resenhas'' publica com exclusividade, é o prefácio da nova edição de "Ficções'', de Borges, a ser lançada este mês pela editora Globo

DAVI ARRIGUCCI JR. é crítico, ensaísta e professor de literatura

 


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.