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Bioy Casares explica
parceria com Borges
JOSÉ GERALDO COUTO
Enviado especial a Buenos Aires
Adolfo Bioy Casares, 80, é conhecido dos leitores brasileiros basicamente
por dois motivos.
Primeiro: é o autor da novela fantástica "A Invenção
de Morel" (1940), um dos textos fundamentais da literatura moderna.
Segundo: foi o principal amigo e interlocutor literário de Jorge
Luis Borges, com quem escreveu vários livros em parceria.
Em agosto, os brasileiros poderão ter uma idéia mais abrangente
da obra e do pensamento desse que é considerado o maior escritor
argentino vivo: ele vem a São Paulo para dar duas palestras. Sua
visita é promovida pelo Instituto Cultural Brasil-Argentina.
Bioy Casares falou à Folha em seu espaçoso apartamento,
no centro de Buenos Aires.
Folha - Em suas memórias o sr. diz que Borges o "curou"
de uma concepção da literatura como jorro subjetivo.
Adolfo Bioy Casares - Sim, tivemos uma longa discussão, uma noite,
e fui dormir achando que o tinha convencido da minha posição.
No dia seguinte, entretanto, percebi que ele é que tinha me convencido
de que a atividade literária tem de ser consciente, deliberada,
rigorosa. Até então, talvez influenciado pelas vanguardas
das artes plásticas, eu acreditava numa liberdade total de expressão,
em dar vazão aos sonhos, à loucura...
Folha - Em contrapartida, o sr. "curou" Borges de seu gosto
por uma literatura cheia de adornos, de estilo barroco.
Bioy Casares - É verdade. Creio que o ajudei a valorizar a clareza,
a transparência, uma certa discrição de tom.
Folha - Como era, na prática, a colaboração de vocês
nas obras que publicaram juntos? Cada um escrevia uma parte?
Bioy Casares - Não. Escrevíamos tudo juntos. Conversávamos
muito, discutíamos praticamente cada parágrafo e, quando
chegávamos a uma conclusão, colocávamos no papel.
Trabalhar juntos incentivava nosso lado jocoso, e íamos acumulando
brincadeiras e referências ao longo do texto. Este resultava então
muito diferente da escrita clara e direta que tínhamos planejado.
Folha - Gostaria que o sr. falasse das diferenças entre sua literatura
e a de Borges. Uma delas diz respeito ao tema do amor.
Bioy Casares - Sim, Borges tinha um preconceito contra o amor, considerava-o
um tema demasiado fácil, de apelo sentimental. E eu, ao contrário,
praticamente só escrevi histórias de amor. Mesmo minhas
narrativas fantásticas são, frequentemente, histórias
de amor.
Folha - "A Invenção de Morel" é considerada
pelos críticos uma obra perfeita. Mas essa perfeição
o incomoda, não?
Bioy Casares - Sim. Percebi que "A Invenção de Morel",
que tinha sido escrito com a intenção de ser um livro sem
defeitos, sofria de um excesso de planejamento. Nada ali era gratuito,
tudo era necessário o que dava uma certa dureza à
obra, um caráter mecânico que passou a me incomodar. Percebi
que as digressões e arbitrariedades são necessárias
para deixar entrar a vida na obra.
Folha - Em suas histórias fantásticas, as tentativas de
ultrapassar os limites humanos dão origem a experimentos que resultam
desastrosos; em suas histórias de amor, este se mostra quase sempre
ilusório e infeliz. Parece que o sr. é bastante pessimista
com relação às possibilidades de felicidade humana.
Bioy Casares - Eu lhe diria que, na minha mente, eu sou pessimista. Ao
mesmo tempo, tenho uma disposição alegre, tendo a ver o
lado cômico da vida. Tenho uma vocação natural para
o otimismo, sou um homem feliz.
Folha - No livro "Fora de Hora", Cortázar, diante da
dificuldade de narrar certa história, confessa: "Queria ser
Bioy".
Bioy Casares - Cortázar disse isso por amabilidade. Éramos
muito amigos e tínhamos grande afinidade literária. Vou
lhe contar um caso espantoso: uma vez escrevemos o mesmo conto.
Ele estava em Paris, eu em Buenos Aires, um não sabia o que fazia
o outro. Ele escreveu "A Porta Condenada", eu escrevi "Uma
Viagem ou O Mago Imortal", que são praticamente a mesma história,
com a mesma ambientação o hotel Cervantes, em Montevidéu.
Esse presente do destino sempre me pareceu uma prova irrefutável
da nossa amizade.
Folha - O que pensa dos escritores mais bem-sucedidos da atualidade, Umberto
Eco e Milan Kundera?
Bioy Casares - Não os conheço muito. Kundera me parece um
bom escritor, Eco menos bom.
Folha - Ele usa a erudição de um modo um tanto aparatoso...
Bioy Casares - É o que penso. A narração é
congestionada pela exibição de uma erudição
absurda.
Folha - Borges, em alguns momentos, chegou perto de merecer essa crítica.
Bioy Casares - Mas ele soube superar isso. Teve autocrítica.
Folha - Que escritores brasileiros o sr. conhece?
Bioy Casares - Veja, lamentavelmente conheço pouco da literatura
brasileira. Conheço Jorge Amado, de quem gosto. Gosto muito de
Guimarães Rosa, também. Eu nunca pensaria em fazer o tipo
de literatura que ele fez, mas o fato é que o fez muito bem.
Folha - O sr. escreveu que escolheria a sala de cinema como lugar ideal
para assistir ao fim do mundo. Ainda vai ao cinema?
Bioy Casares - Agora vou menos, mas sempre fui muito. O último
filme que vi foi "Cães de Aluguel", e não gostei.
Folha - Violento demais?
Bioy Casares - Sim, e sobretudo monótono. Todos os personagens
são desagradáveis e se comportam de modo semelhante, falando
o tempo todo aos gritos. Não é o tipo de cinema que me agrada.
A propósito, um livro que me deu muito prazer, ultimamente, foi
o das memórias de Buñuel. Folha - Nesse livro ele diz que
não gostava de Borges, que lhe parecia arrogante e vaidoso.
Bioy Casares - É um equívoco de Buñuel, que não
chegou a conhecer Borges. Apesar disso é um livro admirável.
Buñuel é um dos meus cineastas preferidos. "O Discreto
Charme da Burguesia", "Esse Obscuro Objeto do Desejo"...
grandes filmes.
Folha - O sr. escreveu dois argumentos cinematográficos em parceria
com Borges. Lembra-se de que tratavam?
Bioy Casares - Um deles, lembro-me vagamente, era sobre uma espécie
de revolução no campo. Do outro, não lembro nada.
Como nunca foram filmados, perdi o entusiasmo de fazer esse tipo de trabalho.
Prefiro escrever histórias que sei que vão virar livros.
Folha - Que imagens guardou de suas passagens pelo Brasil?
Bioy Casares - Duas coisas me impressionaram: o porto de Santos e Brasília.
O primeiro eu conheci numa escala de uma viagem de navio à Europa,
nos anos 50. A intensa agitação do porto ficou tão
vívida na minha memória que utilizei a lembrança
no conto "El Lado de la Sombra". Quanto a Brasília, achei-a
estranha e dura.
Folha - Como em alguns contos seus, é um experimento utópico
que resultou monstruoso.
Bioy Casares - (Risos) Eu não diria monstruoso. Mas me pareceu
uma cidade sem amor. Fiquei pensando naquela gente que vivia no Rio, uma
cidade doce e calorosa, onde os amigos se encontram na rua, e que teve
de ir viver em Brasília, onde tudo é distante de tudo.
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