São Paulo, 19 de Maio de 1996


María Kodama ataca desafetos


Viúva do autor defende edição de textos
antigos e rebate acusações de biógrafa


do enviado a Buenos Aires

A viúva de Jorge Luis Borges, María Kodama, 51, defende-se de seus desafetos contra-atacando-os. Segundo ela, são os manipuladores da obra do escritor que não querem que ela publique seus textos antigos.
Disposta a capitanear a memória e as discussões sobre a literatura de Borges, Kodama conseguiu no ano passado uma sede para a Fundação Borges, que ela criou há nove anos. O prédio _uma labiríntica casa de três pisos na calle Anchorena, no Bairro Alto_ é vizinho à casa onde Borges morou no início dos anos 40 e onde escreveu os contos de ''Ficções''.
Na Fundação, além da biblioteca de Borges e de alguns de seus móveis, como a cama e a escrivaninha, há salas de conferências e seminários e constrói-se uma hemeroteca.
Foi ali que María Kodama falou longamente à Folha sobre sua relação com o escritor. Disse que pode escrever sua própria biografia de Borges e revelou que o último texto escrito por ele, o roteiro cinematográfico ''Para Salvar Veneza'', deverá ser filmado por Sally Potter (de ''Orlando'').
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Folha - Como era o trabalho de Borges? Ele lhe ditava textos todos os dias?
María Kodama - Não, ele não era esse tipo de escritor dramático que diz que se tortura se não lhe chega a inspiração. Ele vivia isso com enorme naturalidade. Dizia que tinha fazer algo todos os dias, para não se sentir preguiçoso. Mas esse algo podia ser pensar no argumento para um novo conto, podia ser escrever um poema, ou podia ser simplesmente ler para preparar uma conferência.
Folha - E como era o trabalho de escrita com ele? Fazia muitas correções?
Kodama - Às vezes sim, às vezes não. Em geral ditava e deixava. No dia seguinte, ou dois dias depois, pedia que lhe relesse e então fazia correções. Às vezes, até depois de já ter entregue o livro para impressão, telefonava ao editor e dizia: ''Na página tal, parágrafo tal, é preciso mudar tal palavra''.
Folha - Como Borges enfrentava o problema da cegueira? Se queixava com muita frequência?
Kodama - Não, jamais o ouvi se queixar. Evidentemente, esse era um problema que o afetava gravemente, mas ele tinha uma personalidade muito positiva. Sempre tentava transformar as coisas ruins em boas. Além disso, ele tinha sido a vida toda um homem que sabia que ia ficar cego, porque era um problema hereditário: seu pai morreu cego e sua avó paterna também. Ele me dizia que havia tido que desenvolver sua memória, porque sabia que um dia não ia mais poder ler, nem ver. Fez então desse infortúnio a fonte de sua memória prodigiosa.
Folha - E a influência da cegueira sobre sua literatura? Há quem sustente que suas obras posteriores à cegueira são menos originais.
Kodama - Não concordo. Sua escrita, como a de todo escritor _cego ou não cego_, sofreu uma evolução, mas não podemos falar de uma fase melhor ou pior. Há críticos, por exemplo, que acreditam que a cegueira, ao contrário, lhe deu uma perspectiva distinta, de maior despojamento e até de uma maior profundidade.
Folha - Para a sra., que parte da obra de Borges lhe parece mais interessante e duradoura?
Kodama - É difícil dizer. Há coisas muito díspares que me agradam. Meu conto preferido, que ele escreveu na casa aqui ao lado, é ''As Ruínas Circulares'' (de ''Ficções''). Mas gosto também, por exemplo, de poemas como os dos tigres e um conto como ''Ulrica'' (de ''Livro de Areia''), que além do mais ele me dedicou secretamente. Foi por isso que, na sua lápide, mandei escrever: ''De Ulrica a Javier Otárola'' (os protagonistas do conto). Me agrada também o poema ''Los Conjurados'', que é de seu último livro. Creio que é, de certo modo, seu testamento, seu desejo do que queria que a humanidade tivesse como meta.
Folha - A sra. leu as biografias de Borges escritas por María Esther Vázquez e Marcos Barnatán?
Kodama - Bem, eu folheei a de Marcos Barnatán, que é um escritor e professor argentino que vive na Espanha, e que conheceu Borges durante muitos anos.
Folha - E a de Esther Vázquez?
Kodama - Não li.
Folha - Bem, a sra. deve saber que ela faz muitas acusações à sra. no livro, não?
Kodama - Acho que nesse livro fica claro, como comentavam os escritores que encontrei na Espanha, que Borges não a quis, e que ela não pôde superar esse fato.
Folha - O livro seria então fruto de rancor e ciúme?
Kodama - Sim, claro, me parece óbvio. Por outro lado, isso não é uma novidade para mim, pois essa senhora foi testemunha principal num processo contra mim que terminou no ano passado, e certamente ela é também o artífice desse processo, que durou nove anos.
Folha - Quem moveu o processo? Os familiares de Borges?
Kodama - Prefiro não falar do assunto, pois moveram contra mim um monte de processos e perderam todos, em todas as instâncias. Nove anos de minha vida já são suficientes, não? O que posso dizer é que comparti toda minha vida adulta com Borges, pois o conheci quando tinha 16 anos, e minha linha de conduta para com ele foi sempre, e continua sendo, de respeito e de amor. A conduta deles está clara também. Essas são coisas muito tristes e, ao falar delas, sinto vergonha pelos outros.
Folha - Como foram os últimos dias de Borges? Quem estava ao lado da sra. naqueles momentos?
Kodama - ''Havia várias pessoas. Estava Claude Gallimard, estava Jean-Pierre Bernés, diretor da Biblioteca de la Pleyade, Aurora Bernárdez, o escritor argentino Héctor Bianchotti, Marguerite Yourcenar... Todas essas pessoas foram testemunhas da relação de amor e respeito entre nós dois, e de uma intimidade que foi nossa e que ninguém tem o direito de conspurcar''.
Folha - Barnatán escreve que Borges, pouco antes de morrer, chegou a perguntar ao dono do hotel em que estavam, em Genebra, se queria que ele fosse morrer num apartamento, para evitar-lhe aborrecimentos. Como foi isso?
Kodama - Não foi bem assim. Borges queria encontrar um lugar na cidade velha, que estava ligada a suas lembranças de adolescência. Mas em Genebra é quase impossível para um estrangeiro alugar ou comprar um imóvel na cidade velha. Enquanto eu procurava, ficamos no hotel, que então tinha se tornado uma espécie de hospital.
Borges chamou o diretor do hotel e lhe disse: ''Não quero trazer-lhe inconvenientes, mas se não conseguirmos outro lugar a tempo, vou morrer aqui mesmo''. E aí, com um espantoso senso de humor, acrescentou: ''Sabe, eu, para os argentinos, sou como uma velha superstição. E o sr. sabe que em Paris há um hotel, que se chama 'L'Hotel', onde morreu Oscar Wilde. Hoje todo mundo quer dormir no quarto em que Wilde morreu. Então isso vai acontecer comigo, de modo que o sr. pode passar a cobrar mais''. E desatou a rir.
O diretor do hotel ficou assombradíssimo, mas Borges era assim. Morrer, para ele, não era uma coisa terrível, e sim talvez, como disse a Marguerite Yourcenar, a resposta a todas as interrogações.
Folha - A ex-mulher de Cortázar, Aurora Bernárdez, estava com vocês em Genebra. Como foi a relação de Borges com Cortázar?
Kodama - Aconteceu uma coisa muito linda. Borges publicou numa revista que dirigia o primeiro conto de Cortázar, ''Casa Tomada''. Muitíssimos anos depois, quando Cortázar já era famoso em todo o mundo, nos encontramos casualmente com ele no museu do Prado, em Madri.
Eu o vi e disse a Borges: ''Cortázar está aqui''. Nesse momento, Cortázar nos viu e se aproximou de Borges. E foi tão lindo ver aquele homem enorme, que parecia um menino que tivesse crescido demais, tomar as mãos de Borges e dizer: ''Mestre, eu quero lhe agradecer, porque o sr. foi o primeiro que acreditou em mim''. Pareceu-me uma homenagem maravilhosa.
Folha - María Esther Vázquez acusa-a de ter afastado Borges de seus amigos, sobretudo de Bioy Casares.
Kodama - Essa amizade é um dos mitos que se criaram. A amizade de Borges e Bioy ocorreu nos anos 40, em que eles trabalharam em colaboração, e depois, como em qualquer outro tipo de relação, a vida os foi distanciando. Quer dizer, há amizades que duram toda a vida, e amizades que não duram. Além do mais, como Borges dizia, ninguém separa ninguém de outra pessoa. Se alguém rompe um vínculo, é porque esse vínculo já não existia. É uma coisa disparatada essa, imaginar que eu afastei, que eu separei. Essa amizade é que já não era como antes.
Folha - Muitos a acusam de publicar textos que Borges renegava.
Kodama - Bem, essa crítica não me atinge, porque o que me interessa são os leitores de Borges. E o que me interessa é a obra dele. Essas obras que estou publicando foram publicadas por ele, não há nada que ele nunca quis publicar.
Essas obras estavam nas bibliotecas, nas universidades. Tinham sido publicadas em periódicos _revistas, jornais_ e em livros também. O que acontece é que Borges costumava fazer brincadeiras sobre seus textos, fazer de conta que não os levava a sério. Uma vez, quando lhe deram um título de doutor em Oxford, ele disse que todos esses seus livros não existiam mais. Um rapaz se aproximou e disse: ''Fique tranquilo, mestre, eles já estão na biblioteca da escola''. Borges me olhou e disse: ''María, que vamos fazer?, estamos perdidos. Como os objetos de Tlõn, eles estão duplicados'' (risos). Claro que algumas pessoas, com má intenção, tomam coisas que Borges disse e, tirando-as do contexto, afirmam que ele não queria que se publicasse este ou aquele livro.
Agora, quem são os que levantam suas vozes contra a publicação desses textos? Aqueles que os manipulavam, que tentavam fazê-los passar como textos secretos, os que queriam parecer mais sábios do que eram pelo acesso a esses textos. Quando me dei conta disso, tudo isso se acabou. Comecei a colocar esses textos ao alcance de todos, para que os leitores julguem por eles mesmos o que está nesses livros. Ademais, não são textos de modo algum vergonhosos. São textos fascinantes de um homem muito jovem, em que se vê a clareza das idéias e, a partir daí, ao longo de toda sua vida, um fio condutor de pensamento.



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