|
Meio século de amor às tramas
do enviado a Buenos Aires
Adolfo Bioy Casares, 82, foi durante meio século o principal amigo
e parceiro literário de Borges.
Recém-indicado pelo governo argentino para o Nobel de literatura
_que disputa, entre outros, com seu compatriota Ernesto Sábato_,
Bioy lança este ano o livro de contos ''Una Magia Modesta''.
Acompanha à distância as filmagens de ''O Sonho dos Heróis'',
longa-metragem de Sérgio Renan baseado em seu célebre romance.
Bioy falou sobre Borges à Folha em seu apartamento no bairro
aristocrático da Recoleta.
Folha - Como o sr. define a evolução da literatura
de Borges?
Adolfo Bioy Casares - Eu diria que ele transitou do barroco e do
romantismo ao classicismo. Tornou-se cada vez mais simples. Quando era
jovem, tentava fazer com que toda frase tivesse uma surpresa final. Isso,
numa frase, pode ser eficaz. Numa sucessão de frases, produz um
sobressalto incômodo. Já nos últimos livros, o estilo
de Borges é fluente e agradável. Também os poemas
de sua maturidade são muito superiores.
Folha - O sr. e Borges não liam um para o outro os contos que
estavam escrevendo, mas discutiam seus argumentos. Houve alguma vez em
que o sr. tenha feito sugestões para um conto de Borges?
Bioy - Não, nunca. Eu sempre achava seus relatos engenhosos,
e aprovava. Agora, isso de não mostrar os originais um para o outro,
sabe como começou? Quando eu estava escrevendo ''A Invenção
de Morel'', mostrei a Borges, pedindo: ''Quero que leia isso''. Li na
cara dele uma expressão de desgosto. Ele sabia que eu gostaria
que ele gostasse, então se sentia forçado a essa representação.
Nunca mais lhe mostrei nada. Me lembrei de que se dizia que dois escritores
latino-americanos, quando se encontravam, um enfiava a mão no bolso
do casaco, o outro enfiava também, como dois pistoleiros num duelo,
e diziam um para o outro: ''Se você me ler eu te leio'' (risos).
Não há nada pior que ter de ler o texto de alguém
e emitir opinião. Ao contrário, é sempre agradável
quando alguém lhe conta uma história. Quando eu tinha uma
história que pretendia escrever, eu a contava a Borges, e vice-versa.
Era uma atitude civilizada.
Folha - Ao contrário do sr., Borges foi infeliz com as mulheres.
Bioy - Sim. Borges se entregava de tal maneira às mulheres
que as fazia sentir que podiam ser caprichosas com ele, que poderiam ser
autoritárias impunemente.
Folha - Borges lhe confidenciava seus amores e seus infortúnios?
Bioy - Às vezes. Uma vez, me disse que tinha passado, à
noite, diante do prédio de uma moça que ele amava e que
ficara emocionado só de pensar que ela estava lá, dormindo.
Quando ele contou isso à própria jovem, ela lhe disse: ''Que
pena que naquela noite eu estava na cama com Fulano'' (risos).
Folha - O sr. leu as recentes biografias de Borges?
Bioy - Só a de María Esther Vázquez. Um livro
muito bom. Sinto que ela, de certo modo, nos devolveu Borges.
Folha - Como foi sua relação com Borges depois que ele
se ligou a María Kodama?
Bioy - Todas as noites em que María Kodama não estava
com ele, Borges vinha a esta casa, mas me pedia que fizesse segredo, porque
se María soubesse o castigaria.
Folha - Como o sr. explica esse aparente domínio de María
Kodama sobre Borges?
Bioy - Borges estava apaixonado por ela e ela fazia o que queria
com ele. Borges me disse uma vez: ''Quando estou sem ela, fico desejando
que venha. Quando estou com ela, fico desejando que vá embora''.
Folha - Que pensa da publicação de textos de Borges
que ele aparentemente renegava?
Bioy - Vejo como uma desgraça que lhe acontece depois de
morto. Temo muito que alguém faça isso a mim, republicando
meus seis primeiros livros, que considero os piores que escrevi.
Folha - Mas há quem argumente que a publicação
desses textos de Borges é útil para os estudiosos e mesmo
para os leitores.
Bioy - Bem, a mim importa muito mais o que Borges queria do que
o fato de ser útil ou inútil para os estudiosos.
Folha - Como Borges enfrentou o drama da cegueira?
Bioy - Foi muito heróico, mas também pensava que
era muito estúpido quem não se dava conta de que a cegueira
era uma desgraça. Alguém lhe disse uma vez: ''Para o sr.,
que é um homem superior, não importa muito estar cego''.
Borges me disse: ''Há imbecis que deviam manter a boca fechada''.
Folha - Ele costumava conversar com o sr. sobre a cegueira?
Bioy - Sim, e vou lhe contar uma coisa incrível. Borges
estava cego havia três ou quatro anos. Um dia, alguém lhe
recomendou um médico que tinha fama de charlatão. Esse médico
lhe fez um implante. Tirou-lhe um pedaço de carne de uma perna
e o enxertou na outra. Borges, por uma semana, viu bastante. No elevador
deste prédio, disse a mim: ''Vejo sua cara como algo negro, mas
vejo bem os limites do seu cabelo, os contornos de sua cabeça e
de seus ombros''. Alguns dias antes, não via nada. É linda
essa história, não?
Folha - Como foram suas últimas conversas com Borges?
Bioy - Quando ele estava de partida à Suíça,
eu lhe disse: ''Te desejo uma boa viagem. Que tudo corra bem''. Ele me
respondeu: ''Como tudo vai correr bem, se vou morrer?''. E eu disse: ''Sendo
assim, não seria melhor que você ficasse em Buenos Aires?''.
Ele me respondeu: ''Para morrer, dá no mesmo estar em qualquer
parte''. Essa frase me comoveu um pouco, me pareceu uma bela frase. Acho
que a literatura me pregou uma peça: apreciei a frase literária
e não me dei conta de que eu podia argumentar que, se a morte é
horrível, é melhor chegar a ela rodeado de amigos, num lugar
que a gente conhece, que num hotel de uma cidade estrangeira. De todo
modo, me consola que tenha sido na Suíça, que lhe agradava
tanto.
Dois dias antes de morrer, ele me telefonou para despedir-se. Apesar disso,
no dia em que soube da morte de Borges, me senti aniquilado. Me custava
acreditar na existência de um mundo sem Borges.
|