São Paulo, 19 de Maio de 1996


Para Piglia, Borges era a literatura


do enviado a Buenos Aires

Para o escritor Ricardo Piglia, um dos mais importantes da Argentina na atualidade, a morte de Jorge Luis Borges, há dez anos, deixou meio desamparados os escritores do país.
''Quando morreu Henry James, Ezra Pound disse que havia desaparecido o único homem que sabia exatamente o que era a literatura. Nós sentimos mais ou menos isso quando Borges morreu, porque para nós ele era a literatura'', diz Piglia, que está escrevendo o prólogo do CD-ROM sobre Borges produzido pelo colecionador Nicolás Helft (leia à pág. 5-4).
''Mesmo que não tivéssemos contato com ele, só o fato de saber que ele estava ali, na calle Maipu, disposto sempre a falar sobre livros, dava uma espécie de segurança, de confiança'', continua o escritor, que falou à Folha em seu escritório de trabalho, no centro de Buenos Aires.
Piglia, que está terminando um romance chamado provisoriamente ''Blanco Noturno'' (alvo noturno), disse ter visitado Borges quatro vezes em sua casa. Numa delas, gravou uma entrevista e fez uma série de fotos. Na bagunça de seu escritório, não encontra nenhuma das duas.
''Ele era muito acessível, estava sempre disposto a falar de literatura com os jovens.''
Segundo Piglia, o prólogo que está fazendo para o CD-ROM de Borges vai tratar da construção da memória, um tema tão caro ao autor de ''Funes, o Memorioso'' e de ''A Biblioteca de Babel''.
Quanto às biografias que se publicaram recentemente sobre Borges, Piglia considera-as ''muito interessantes''. ''Sou um leitor assíduo de biografias. Gosto muito da figura da vida de um escritor como construção ficcional. Uso isso nos meus próprios romances.''
Segundo ele, a biografia escrita por María Esther Vázquez pertence a um gênero, ''o da pessoa que conheceu o biografado e que sobre suas próprias lembranças dele constrói um perfil''.
Piglia diz que há nessa biografia de Esther Vázquez uma característica que a aproxima à publicada em 1990 por Estela Canto (''Borges à Contraluz''): ''As duas tendem a falar de um homem que não parece ser o autor de 'Tlõn, Uqbar, Orbis Tertius', ou seja, elas parecem dar a entender que a chave dessa pessoa não está em ter escrito esse conto, ou 'O Aleph'. São, ao contrário, olhares sobre um indivíduo que, pelo que se diz, teve uma vida muito desafortunada com as mulheres''.
Mas, de acordo com Piglia, ''não necessariamente temos que crer nisso''. ''Pode ser que no futuro apareça uma mulher que conte como Borges foi feliz com ela.''
O que Piglia disse achar mais interessante é a tensão entre o fato de Borges escrever cartas em que se confessa perdidamente apaixonado e, não obstante, mostrar na sua escrita um absoluto controle da língua e da expressão.
Sujeito vacilante
Outro aspecto que Piglia julga interessante nas cartas de amor de Borges _algumas delas ele encontrou no acervo da Coleção Borges, de George e Nicolás Helft (leia à pág. 5-4)_ é constatar que, também nelas, ''o sujeito que escreve é um sujeito que duvida, é um sujeito frágil, um sujeito fraco, assim como o narrador de seus textos ficcionais''.
Para Piglia, ''é isso que coloca Borges na contramão de toda a tradição literária latino-americana do grande herói narrador, que busca com uma espécie de narcisismo absoluto seu êxito com as mulheres, sua capacidade de intervenção na realidade''.
''Borges, ao contrário, soube construir um herói-narrador que não entende, que vacila e que, com muita delicadeza, vai avançando num mundo hostil.''
Piglia tem uma opinião taxativa sobre a obra de Borges: ''O grande Borges acabou em 1953, 55, quer dizer, quando ele ficou definitivamente cego. Depois que ele passou a ditar, em lugar de escrever, seus textos perderam a qualidade e a densidade que tinham''.
O ''grande Borges'' é ''o Borges dos magníficos contos de 'Ficções' e de 'O Aleph' ''. Isso não significa que tenha escrito maus livros depois disso. ''Seus textos continuaram sendo dignos, sempre com muito humor e ironia.''
Para Piglia, um dos traços mais admiráveis de Borges foi ter sabido mover-se num mundo cada vez mais superficial e não-letrado. ''Em qualquer lugar, até na mais estúpida entrevista de TV, sabia sempre trazer a conversa para o âmbito da literatura.''



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