São Paulo, 19 de Maio de 1996


As afinidades ilusórias


Mário de Andrade foi pioneiro na leitura de Borges no Brasil

ANTÔNIO PAULA GRAÇA
especial para a Folha

Quando, em 1966, Michel Foucault abriu "As Palavras e as Coisas" com a desconcertante taxinomia chinesa, resgatada pelo humor de Jorge Luis Borges, parece ter iniciado uma vitoriosa campanha de marketing cujo produto era o escritor argentino. No Brasil, pelo menos, foi a partir dos anos 70 que Borges se tornou visível ao grande público e à mídia, embora, àquela altura, já houvesse escrito todos os seus livros mais importantes. Os posteriores volumes de poemas não contribuíram muito para a construção do mito Borges, o cego erudito, irônico, entre livros e, como Bernard Shaw, capaz de transformar em paradoxo o mais ululante lugar-comum. Entretanto, Borges vinha sendo lido e estudado por escritores brasileiros havia bastante tempo. Lembremos os primeiros deles.
Mário de Andrade a todos precedeu e, em 1928!, escreveu tudo o que era possível então. E com um minúsculo índice de erros, entre os abundantes acertos. Cita as duas primeiras coletâneas de poesia de Borges e passa a comentar "Inquisiciones'': "Este é um livro excepcionalmente bonito, duma elegância muito rara de pensamento, verdadeira aristocracia que se educou na sobriedade, na imobilidade da exposição e no raro das idéias. Além disso apresentando uma erudição adequada. Às vezes ri. Muito pouco".
Em não perceber o "basso continuo" do riso ininterrupto por sob a melódica variação erudita, está o principal tropeço do escritor paulista. Emir Monegal, que compilou e apresentou os cinco artigos de Mário de Andrade sobre a literatura argentina moderna, não deixou passar sem penitência o pecado venial. Mário continua: "É verdade que em 'Inquisiciones' ele apresenta menos que pensamentos, resultados de pensamentos, porém suponho uma espécie de dialética hegeliana no jeito dele pensamentear. Um certo ceticismo decadente que talvez lhe venha da cultura, excessiva pra idade tão moça que mostra só 28 anos".
Monegal perdoou-lhe a impropriedade da alusão a Hegel. A dialética de Borges dista alguns séculos e não menos quilômetros do filósofo alemão. Permaneceu fiel aos gregos, morreu rediscutindo e reinventando os enigmas de Zenão. Para ele, tempo e espaço nunca foram evidências, nem mesmo formas puras necessárias ao pensamento, como em Kant. Nesse capítulo, é bom ressaltar, a leitura de filosofia de Borges é curiosa, não original, mas demolidora. Jamais busca conceitos, sistemas, nem mesmo temas filosóficos. De fato, ele seleciona comprovações e refutações para as idéias que defende ou para as questões que trabalha sempre, obsessivamente, como o tempo e o espaço. Seu caráter acusador se volta contra a filosofia amesquinhada das academias. Em Borges, o anacronismo filosófico é sempre uma denúncia.
Também não tem muita legitimidade atribuir ao escritor o ceticismo decadente. Ceticismo, sim. Decadentismo, nunca. O próprio Monegal sublinhou a importância do pensamento por aforismo de Schopenhauer e Nietzsche já no primeiro Borges.
Com certeza, Mário de Andrade não poderia, em 1928, repita-se, ter percebido o caráter afirmativo do niilismo nietzschiano. Atribuindo-o aos constrangimentos da idade (28 anos apenas), Mário parece condescender com o "niilismo decadente" de Borges. Mas é preciso lembrar que ele também não vivera além do jovem poeta argentino mais que seis anos.
Afora esses percalços compreensíveis, os artigos de Mário de Andrade não são apenas precursores. Deixam-nos inquietos com a inteligência e a correção de sua leitura. Sem dúvidas, ele pressentiu o Borges por vir, o ensaísta e contista que iria não apenas adelgaçar as fronteiras entre ficção e ensaio, mas também dinamitar a idéia de sujeito.
Encontrando-o numa praça, uma senhora perguntou-lhe se era Borges. Ele respondeu: "A veces". Quando suas bibliotecas se tornaram cosmogônicas, quando a literatura passou a ser palimpsesto em correção perpétua, quando os textos deixaram de ter autores e mesmo deixaram de ser um texto, o sujeito cognoscente cartesiano, histórico dos marxistas ou ontológico de toda metafísica já perdera vigência. Foi por ter revogado a idéia de sujeito, na ficção e no ensaio, que Borges se viu como mestre dos "maŒtre-a-penser" franceses.
Voltemos às primeiras recepções de Borges no Brasil. Outro que leu o jovem poeta argentino foi Manuel Bandeira. Embora não tenha deixado anotações ou comentários, Bandeira com certeza se identificou com sua poesia, pois inseriu-a no fechado círculo de suas afinidades eletivas.
Nos "Poemas Traduzidos" de 1945, entre Goethe, Heine e Rilke, lá estava Jorge Luis Borges. O poema era "Pátio" e fazia parte do primeiro livro de seu autor, "Fervor de Buenos Aires" (1926). Desconheço a edição utilizada por Bandeira, mas na revisão que fez em 1969, Borges deu o título de "Un Patio". Vale a pena usar uma ironia borgiana contra ele: o original não se manteve fiel à tradução. Os dois versos iniciais foram preservados: "Com a tarde/ cansaram-se as duas ou três cores do pátio". Mas a ilusão de permanência já se acaba. Bandeira traduz: "A grande franqueza da lua cheia/ Já não entusiasma o seu habitual firmamento/ Hoje que o céu está frisado,/ Dirá a crendice que morreu um anjinho". A estranheza das imagens e a irascível incompatibilidade entre a lua cheia e o céu habitual, agora enrugado e hostil, devem ter agradado ao poeta. A seguir vem o leve estremecer de um "pathos" preciso e bandeiriano: o anjinho morto, fruto da crendice, continua a existir no poema (leia nesta página).
Mas o trabalho foi em vão. Borges extirpou os quatro versos, cujos vestígios, fiéis ou traidores, sobrevivem apenas na tradução. Bandeira provavelmente gostou de: "O pátio é a janela/ Por onde Deus olha as almas". Borges achou-os excessivos e crédulos. Amputou-os, restando "El patio es el declive/ por el cual se derrama el ciclo en la casa". Afinal, as hipérboles nunca o satisfizeram. Não importam os cortes. Bandeira continuaria a ler no poema o que lhe era caro _um cromo cotidiano, aparentemente mudo, mas cheio de revelações.
Mais tarde, em 1964, o crítico Fausto Cunha, encantado com o escritor, declarou-o, a um só tempo, Deus e labirinto. Foi o suficiente para que Augusto Meyer se lançasse ao espinhoso desafio de investigar a presença de Deus na ficção borgiana. Lê dois contos de ''O Aleph''. Neles descobre um deus semelhante ao de Heráclito, cuja capacidade totalizadora, unindo dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, fartura e fome, se revela também como indiferença olímpica ao destino humano.
A habilidade analítica de Augusto Meyer se exibe quando escreve: "Tudo isto envolve necessariamente, além de uma arte soberana e quase escandalosa no governo da lucidez poética, sempre a cavaleiro da intuição criadora, certa franja de paralogia metafísica, impregnada de humorismo transcendente, aquele capitoso 'humour' borgiano, que vai espicaçando o nosso espanto com o arabesco renovado e aberto de uma fantasia desatada em imprevisto e agilidade". Augusto Meyer, nos anos 60, também não podia suspeitar que outra estrela da filosofia contemporânea, Jean-François Lyotard, iria eleger a paralogia, fundadora da anticrítica de Borges, como o instrumento privilegiado na legitimação do saber pós-moderno.
Em seguida, Meyer comete leve falsificação, quando dissolve a divindade borgiana no execrável recurso Deus ex machina. Vimos que Borges antecipa a dissolução do sujeito, entretanto ele também opõe à completa ausência uma onipresença atordoante do sujeito. Por isso, entende que todos os livros do universo ou não têm nenhum ou apenas um único e eterno autor. Essa é a complexidade de seu pensamento.
O universo de ''Tlõn, Uqbar, Orbis Tertius'' não é mais do que nosso mundinho de paradoxos e aporias filosóficas. Nesse mundo: "Também os livros são diferentes. Os de ficção abarcam um único argumento, com todas as permutações imagináveis. Os de natureza filosófica invariavelmente contêm a tese e a antítese, o rigoroso pró e contra de uma doutrina. Um livro que não encerre seu contralivro é considerado incompleto".
Da mesma maneira, o pensamento de Borges se desdobra em auto-refutações e não raras vezes aceita correr o risco de aniquilar-se por uma extensão ad absurdum de suas proposições. Quanto à divindade, podemos supor que, se o deus de Berkeley, é "um ubíquo espectador, cujo fim é dar coerência ao mundo", o seu parece divertir-se em revelar a incoerência que, como parasita, se hospeda em toda certeza.
Em sua ''História da Literatura Ocidental'' (1959-1966), Otto Maria Carpeaux inaugurou um novo Borges, aquele que "integrou os elementos irracionalistas do criacionismo num sistema filosófico cuja tese principal é o caráter cíclico do Tempo e, portanto, a reversibilidade de todos os acontecimentos. Mas, em vez de um trato de metafísica, escreveu contos filosóficos, as 'ficciones', altamente fantásticas, engenhosamente construídas e baseadas em 'notas eruditas' diabolicamente inventadas, com a ajuda de toda a erudição fabulosa de que Borges dispõe realmente. É uma arte das mais requintadas, algo fria e desumana, sempre fascinante: obra significativa do século 20".
A luxúria dos advérbios parece uma concessão ao espanto diante da grandeza. Mas Carpeaux percebeu que erudição fictícia e verdadeira conviviam no mesmo autor e que aquela mente capaz de tudo embaralhar desfazia para sempre o ninho cálido em que o humanismo subjetivo ia refugiar-se. Por fim, o historiador não resistiu à tentação e desvelou a face satânica do escritor argentino. Pronto, não eram os livros nem as bibliotecas de Borges que criavam falsos cosmos a nos aturdir. Ele mesmo era o diabólico demiurgo a criar e trapacear, afirmando assim o fim último de toda ficção. E o resto é balbúrdia.
Cabe agora perguntar se a paixão brasileira foi correspondida. Ao que parece Borges não se interessou muito por nossa literatura. Minas Gerais e Rio Grande do Sul aparecem em seus contos. Entretanto, quando se dedicou a escolher cem obras para serem vendidas em bancas de jornal, esqueceu Machado de Assis e elegeu ''O Mandarim'', de Eça de Queirós, o que não constitui nenhuma lástima, afinal, nessa biblioteca ''personal'', também não se encontram Shakespeare nem Dante.
Borges julgava tal escolha demasiado óbvia _poderia dizer o mesmo de Machado de Assis. Diga-se, de passagem, que ''O Cânone Ocidental'', de Harold Bloom, não passa de uma versão pretensiosa e mal-humorada dos prólogos que Borges escreveu para sua biblioteca pessoal. Ali, além de clássicos insuspeitos, encontramos o fantasioso H.G. Wells, o aventureiro R.L. Stevenson e escritores de romances policiais, como William Wilkie Collins e G.K. Chesterton _mais uma irônica parábola sobre o gosto literário, mais um lancinante corte no rosto daqueles que concebem literatura como um vetusto museu de obviedades.
Voltemos à possível correspondência amorosa de Borges. Ele escreveu, sim, sobre literatura brasileira. O eleito, entretanto, não foi Machado de Assis, Guimarães Rosa ou Carlos Drummond. Em seus artigos para a ''Revista Multicolor'', em 30 de dezembro de 1933, ele resenhou o livro ''Nordeste e Outros Poemas do Brasil'', do obscurecido Rui Ribeiro Couto (1898-1963).
Mas Borges, humilde, confessa sua ignorância sobre a literatura latino-americana e especialmente brasileira: "Meu desconhecimento da lírica do Brasil não se envergonha demasiado de ser total". Sua elegância leva-o a justificar-se em seguida: "Não se veja nisso um desdém, veja-se a indolente convicção _talvez equivocada, porém não ilógica_ de que pessoas parecidas comigo ou com os amigos que frequento e providas de uma biblioteca não muito distinta não podem me proporcionar vastos assombros". Talvez por esse motivo ele tenha silenciado sobre Machado de Assis. Não importa o desdém ou a preguiçosa convicção, hoje nos basta ler Borges e dele nos aproximarmos com "prévio fervor e com uma misteriosa lealdade". Era assim que definia um clássico.



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