São Paulo, quinta-feira, 30 de setembro de 1999




China abre mão de
paraíso proletário


Para voltar à esfera dos países mais influentes do
planeta, chineses largam dogma marxista, adotam economia de mercado e atraem investimentos


JAIME SPITZCOVSKY
enviado especial à China

O Partido Comunista chinês comemora 50 anos de sua chegada ao poder com um objetivo bem diferente daquele proclamado por Mao Tse-tung em 1º de outubro de 1949. Os herdeiros da revolução abriram mão do sonho de ‘‘construir o paraíso proletário’’, recorreram à economia de mercado e, na rara alquimia capitalismo-comunismo, iniciaram a decolagem econômica para alimentar o ‘‘renascimento da China’’.

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Operários trabalham em poste de iluminação sobre o retrato de Mao Tse-Tung, na praça Tianamen, em Pequim, nos preparativos da festa de 50 anos da República Popular da China


Por ‘‘renascimento’’, entende-se trazer a China de volta à galeria das principais potências do planeta, em contraste com a situação vivida pelo menos desde o século 19 até a Revolução de 1949, período marcado por invasões de potências colonialistas e ondas de fome. ‘‘Naquela época, éramos considerados os homens doentes da Ásia, os com menos educação, com menos saúde’’, afirma Shi Zhongquan, vice-diretor do Centro de Pesquisas do Comitê Central do PC chinês.
De 1949 a 1978, a China foi coadjuvante na Guerra Fria, o embate entre EUA e URSS. Internamente, enfrentou turbulências como ondas de fome e acirramento de perseguições políticas e de lutas internas no PC.
Em 1978, o dirigente comunista Deng Xiaoping desenhou com dois slogans o caminho do ‘‘renascimento’’, para trazer a China de volta ao lugar de uma das mais influentes civilizações no planeta: ‘‘enriquecer é glorioso’’ e ‘‘não importa a cor do gato, o importante é que mate o rato’’.
A metáfora, recurso abundante na retórica chinesa, sinalizou que a China de Deng abandonava dogmas do marxismo, introduzia a propriedade privada e buscava investimentos estrangeiros. Como objetivo da estratégia, salvar o país do colapso econômico provocado por três décadas de ortodoxia comunista e também permitir ao PC que mantivesse o poder no país mais populoso do planeta_ 1,2 bilhão de habitantes, 20% da população mundial.

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Guindaste de construção civil próximo a prédios no moderno distrito financeiro e industrial de Pudong em Xangai

As estatísticas comprovam o atual sucesso da fórmula de Deng, que pode ser resumida em economia aberta com sistema político fechado, combinação estranha para olhos ocidentais habituados a associar liberdade econômica a direitos civis. Essa lógica ainda se impõe lentamente na China, devido às magras tradições democráticas na região.
O PC, ciente do perigo futuro de mais pressão por democracia, mantém o monopólio do poder e a perseguição a dissidentes políticos ou religiosos. Na política, elegeu como prioridade a ‘‘manutenção da estabilidade’’, ou seja, sua sobrevivência no poder.
A mão pesada do PC não impediu um dos processos de crescimento econômico mais acelerados da história, empurrado pela combinação inicial de investimento estrangeiro, mão-de-obra barata e indústrias voltadas às exportações. Entre 78 e 98, a taxa média de expansão da economia chinesa foi de 9,8% ao ano.
‘‘Começando quase do zero, a China se tornou uma potência econômica na Ásia’’, constata o primeiro-ministro Zhu Rongji. Para as comemorações do cinquentenário da Revolução, o PC, num resquício de sua ortodoxia vermelha, divulgou uma lista de 50 slogans que ‘‘podem ser proclamados pelas massas’’ e pelo menos dois deles desnudam a ‘‘maré revolucionária’’ de estímulo às mudanças: ‘‘Emancipe sua mente, busque a verdade a partir dos fatos”, e “promova de maneira firme a reforma e a abertura’’.
O PC rotulou a sua alquimia de ‘‘socialismo com características chinesas’’. Mas, reza um blague em Pequim, o sistema tem cada vez menos socialismo, com a expansão do setor privado, e mais características chinesas, fruto de ventos nacionalistas.
Com o crescimento econômico, uma onda nacionalista cobre a China, tendência que o PC busca aproveitar na tentativa de aumentar sua sobrevida no poder. Ou seja, com o fracasso das teorias marxistas-leninistas, os herdeiros de Mao buscam preencher o vácuo ideológico recorrendo ao nacionalismo e aos valores tradicionais chineses. Apresentam-se como ‘‘guardiões de uma das mais antigas civilizações do mundo’’.
Filósofos da China feudal, como Confúcio (551-479 a.C.), voltaram a ser cultuados pelo PC, interessado nas idéias que promovam o ‘‘respeito à autoridade’’.
O ‘‘grande timoneiro’’ Mao também continua a ser reverenciado. ‘‘Ele foi responsável pela primeira etapa dos últimos 50 anos, que colocou o povo chinês novamente de pé’’, observa Hou Yunchun, porta-voz da Comissão Estatal de Economia e Comércio, órgão que assessora o premiê. ‘‘Na segunda etapa, Deng fez do povo chinês um povo rico e, agora, Jiang faz do povo chinês um povo poderoso’’, diz Hou.
A crença no ressurgimento se apóia ainda na recuperação de territórios abocanhados pelo colonialismo. Em 1997, Pequim recuperou o controle de Hong Kong, um dos principais motores do capitalismo asiático e que ficou 156 anos sob domínio britânico.
Hong Kong voltou à ‘‘pátria-mãe’’ por meio da fórmula ‘‘um país, dois sistemas’’, acordo assinado entre Londres e Pequim em 84. A ex-colônia, embora ainda sentindo efeitos da crise financeira asiática de 97, mantém seu capitalismo e democracia, enquanto a China responde por política externa e defesa. A mesmo fórmula se aplica a Macau, enclave português com volta ao controle chinês marcada para 20 de dezembro.
A ascensão chinesa implica mudança sensível no cenário interno do país e na geopolítica mundial, mas não significa a emergência de uma superpotência econômica e militar com ares de EUA.
Na área social, o governo admite a existência de 42 milhões de pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza, ou seja, com cerca de 600 yuans (US$ 73) por ano.
A diferença tecnológica também atrapalha. ‘‘Em ciência e tecnologia, ainda enfrentamos um atraso médio de 50 anos em comparação com os países desenvolvidos, embora tenhamos alguns setores de ponta, como área espacial’’, diz Shi. ‘‘Mas, na velha China, nosso atraso em relação ao Ocidente era de até 200 anos.’’
O revigoramento chinês, acompanhado pelo fracasso soviético, é a principal mudança no cenário geopolítico da virada do século. Analistas como o norte-americano Ross Munro alertam para um inevitável confronto entre Washington e Pequim.
‘‘Falar de uma ameaça da China é ridículo’’, afirma Shi Zhongquan. ‘‘Claro que os grandes temas mundiais precisam hoje da participação de nosso país, mas estamos passando de uma nação com uma diplomacia fraca a um grande país. Não estamos nos transformando numa superpotência.’’


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