|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
1970
Tri em meio ao chumbo
Conquista definitiva da Jules Rimet, no México, torna-se uma trégua nos tempos de violência da ditadura militar
ESPECIAL PARA A FOLHA
Ela tinha quase 13 anos quando o Brasil ganhou a Copa de
1970. Só mais tarde se daria
conta de que aqueles também
eram tempos de violência.
Não se recorda de qualquer
menção à invasão do teatro
Ruth Escobar, durante a peça
"Roda Viva", pelo Comando de
Caça aos Comunistas. Tampouco do sequestro do embaixador dos EUA Charles Elbrick.
Porém se lembra dos rumores sobre a morte do estudante
Edson Luís no restaurante do
Calabouço. Só descobriu quem
era Che Guevara anos mais tarde, mas lhe ocorre ter ouvido
no rádio notícias sobre a prisão
do Bandido da Luz Vermelha e
sobre os assassinatos de Martin
Luther King, Bob Kennedy e
Sharon Tate. Viu pela TV a chegada do homem à Lua.
Achava o máximo os garotos
mais velhos, embora reprovasse os do centro acadêmico que
torciam pela derrota da seleção
brasileira. Devia ouvir conversas sobre barricadas no Quartier Latin, a tomada da Sorbonne e os protestos contra a Guerra do Vietnã, mas era tudo meio
que uma coisa de outro planeta.
Mencionava-se o AI-5, mas
ela estava ocupada com os seriados da TV e com sua iminente passagem de menina a mulher. Política? O mais perto a
que chegou foi ver Caetano, Gil,
Os Mutantes e Geraldo Vandré
nos festivais de música pela TV.
Mas até hoje não lhe sai da
memória a história de Salvador. Era um grande amigo de
seu pai, casado, duas filhas, prefeito no interior, a quem visitavam ou recebiam em casa nas
férias escolares. Não sabe precisar a data, mas acha que em
1968 aquela família ruiu.
Salvador perdeu o cargo, caiu
na clandestinidade e virou alvo
da polícia. A mulher se mudou
com as crianças para outra cidade, e ele passou a vagar por aí.
De vez em quando aparecia
na casa de minha amiga, instalando-se por semanas sem pisar na rua. Após algum tempo,
seu pai o levava embora.
Assim foi durante anos.
Quando as coisas se acalmaram, a mulher e as crianças se
instalaram no Sul do Brasil.
Mais tarde se mudou o marido, ainda clandestino. Quando
finalmente parecia que o pobre
havia encontrado um pouco de
paz, sofreu um acidente, teve
um traumatismo craniano e
morreu tempos depois.
Até onde se sabe, a família
nunca recebeu a tal "bolsa ditadura". Salvador não pertenceu
a organizações de esquerda,
tampouco foi preso ou exilado.
Sobre o Brasil na Copa, minha amiga se lembra da farra
em sua casa. Era época dos "televizinhos", e os mais chegados
se acomodavam na sala. Os
nem tanto e até os desconhecidos viam os jogos no jardim, cada um em seu banquinho.
Sua mais vívida lembrança
de 1970 foi a comemoração do
título nas ruas. Ela estava no
carro de seu pai, observando a
multidão que celebrava o tri.
Quando passavam por um
grupo de rapazes, um deles segurou seu rosto e lhe tascou um
beijo na boca. Foi só uma bitoca, certamente a expressão da
alegria incontida. Mas, para ela,
aquele instante se tornou a
inesquecível memória do primeiro beijo.°
(MANOLO FLORENTINO)
Texto Anterior: Bagunça na primeira copa com militares Próximo Texto: Médici pede Dario, maluf dá Fuscas Índice
|